“Surpreende, mas não deveria”, diz virologista brasileira que assessora OMS sobre varíola do macaco

Alguns países do continente africano vivem há anos surto da doença, mas ela só acendeu sinal de alerta ao se disseminar rapidamente em países ricos nas últimas semanas

Foto: Wikimedia Commons

Em menos de um mês, mais de 900 casos de varíola do macaco foram detectados em países fora do continente africano, onde em algumas localidades a doença é endêmica (ocorre com frequência). Autoridades sanitárias globais acenderam um sinal de alerta na tentativa de frear o avanço do surto. Para quem estuda o assunto há décadas, algo semelhante já poderia ser imaginado se o mundo olhasse com mais atenção ao que acontece na África.

Em entrevista ao R7, a virologista Clarissa Damaso, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro Comitê Assessor da OMS (Organização Mundial da Saúde) para Pesquisa com o Vírus da Varíola, é taxativa ao dizer que “as evidências estavam aí para mostrar que alguma hora isso (surto fora da África) iria acontecer, se não fosse com monkeypox (nome em inglês da varíola do macaco), (seria) com outra doença”.

As evidências as quais ela se refere são surtos em andamento em países como a Nigéria, que desde 2017 já registrou mais de 500 casos suspeitos e 200 confirmados, segundo a OMS.

“De 2009 a 2019, a República Democrática do Congo acumulou mais de 18 mil casos de monkeypox”, complementa a pesquisadora, que estuda o vírus da varíola há 35 anos. Em seu site, o CDC (Centros para Prevenção e Controle de Doenças) dos Estados Unidos, descreve que “casos de varíola do macaco em pessoas que ocorreram fora da África estão ligados a viagens internacionais ou animais importados, incluindo casos nos Estados Unidos, bem como em Israel, Cingapura e Reino Unido”.

Todavia, o surto atual mudou um pouco do que já havia sido visto sobre a varíola do macaco, a começar a pela dificuldade – ou quase impossibilidade – de rastrear as pessoas que teriam viajado com o vírus da África para a Europa.

O primeiro caso recente foi notificado no Reino Unido em 6 de maio, de um homem com histórico de viagem para a Nigéria. Alguns dias depois, outras duas pessoas que vivem juntas foram diagnosticadas com varíola do macaco, mas que não tiveram (aparentemente) nenhum contato com o caso inicial.

“O surto atual é a primeira vez que o vírus foi transmitido de pessoa para pessoa na Inglaterra, onde as ligações de viagem para um país endêmico não foram identificadas”, afirmou nesta semana a UKHSA (Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido).

Cerca de uma semana depois dos casos na Inglaterra, pacientes começaram a aparecer em serviços de saúde de Portugal com sintomas clássicos da doença: as lesões ulcerativas na pele. O mesmo ocorreu na Espanha, onde muitos dos pacientes tinham relação com um festival LGBTQIA+ nas Ilhas Canárias e com uma sauna para adultos em Madri.

Do outro lado do oceano Atlântico, o primeiro caso de varíola do macaco foi confirmado nos Estados Unidos, em 18 de maio. Era um jovem que havia viajado ao Canadá, país que também confirmou casos a partir do dia 23.

Desde então, a doença já foi detectada em todos os continentes, exceto na Antártida. “Para todo mundo, foi uma certa surpresa – não deveria ser. Para os virologistas, isso não é uma surpresa. Não é a primeira vez que monkeypox sai da África”, lembra a virologista.

O primeiro surto de varíola do macaco fora da África foi registrado nos Estados Unidos em 2003, cerca de três décadas após o vírus ter sido detectado em um humano – ele foi descoberto em 1958 em colônias de primatas.

Identificou-se que roedores importados da África como animais de estimação transmitiram o vírus para cachorros, que passaram para humanos. Quarenta e sete casos foram confirmados em seis estados.

Posteriormente, casos esporádicos foram registrados em viajantes procedentes da Nigéria entre 2018 e 2021, nos EUA, Reino Unido, Israel e Cingapura. Para Clarissa, o aparecimento esporádico de casos fora da África pode ter feito com que o problema não fosse abordado da maneira correta.

“Hoje, em um mundo globalizado, não podemos mais ter esse tipo de coisa que a doença é de um determinado país, é do mundo. Também não se pode ter essa concepção de que doenças da África não importam, é absurdo. As coisas só se movimentam quando afeta países desenvolvidos e em desenvolvimento. Tem que ter um olhar mais atento para o que acontece em países africanos. Com ebola (2014-2016), foi a mesma coisa, mas foram poucos casos que saíram da África”.

Poderia ser pior 

A virologista explica que o surto atual é causado pela cepa do vírus da varíola do macaco da África Ocidental, a mesma da Nigéria, que provoca quadros leves, semelhantes à catapora em adultos saudáveis.

“A nossa sorte – e não podemos nos dizer que estamos com sorte – é que a cepa que saiu da África foi a da Nigéria, que é de um vírus bem menos virulento.”

A outra cepa que circula no continente é a da Bacia do Congo, que, segundo a OMS, “parece causar doença grave com mais frequência, com taxa de letalidade relatada anteriormente de até cerca de 10%”. A taxa de mortalidade da cepa da África Ocidental observada naquele continente é em torno de 1%.

Clarissa ressalta que, ainda assim, crianças, grávidas e pessoas com imunossupressão podem evoluir para quadros graves caso sejam infectadas.

Embora haja um crescimento exponencial de novos casos, a especialista chama atenção para a baixa taxa de transmissão secundária que tem sido observada em alguns países. Na prática, isso mostra que o vírus passa de uma para outras duas pessoas, em média.

“O que estamos observando também é que, tirando os países que têm sido o epicentro desse surto – Espanha, Portugal e Reino Unido –, alguns estão aumentando o número de casos, mas a maioria está ficando em um caso, dois casos. Ou seja, são pessoas que vieram (de fora), e não está havendo uma transmissão secundária intensa. É uma característica de monkeypox não ter uma taxa de transmissão secundária muito extensa”, detalha a especialista.

Este cenário é um facilitador para frear as infecções, desde que sejam usadas as estratégias que funcionaram há mais de 40 anos para erradicar a varíola tradicional, considera a pesquisadora.

É necessário identificar as pessoas que tiveram contato próximo com o indivíduo infectado e isolá-las. Além disso, as poucas vacinas disponíveis mundialmente, devem ser usadas em trabalhadores da linha de frente do atendimento dos casos e pessoal de laboratórios que realizam os exames diagnósticos.

Em comunicado recente, a OMS considera o risco geral de saúde pública global em nível “moderado”, mas faz a seguinte ressalva: “a transmissão generalizada de humano para humano já está em andamento, e o vírus pode estar circulando sem reconhecimento por várias semanas ou mais”.