Presença de neonazistas na Ucrânia não justifica invasão russa, dizem especialistas

Presidente Putin usou um argumento frágil para justificar a guerra por ignorar a atuação de radicais também na Rússia

Foto: Defense of Ukraine/Reprodução

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, no final de fevereiro, o presidente Vladimir Putin usa como justificativa a presença de células neonazistas no outro lado da fronteira. O mandatário da Rússia chegou a comentar a participação de fascistas em diferentes níveis hierárquicos no governo de Volodimir Zelenski.

Especialistas classificaram este argumento de Putin como “hipócrita”, já que o governo russo possui traços fascistas, como leis que atacam minorias e privam a imprensa de exercer um trabalho livre.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo) Kai Enni Lehmann destaca que Zelenski é judeu e o mundo “nem deve dar ouvidos” para os argumentos de Putin para justificar a invasão da Ucrânia.

“Putin está mentindo o tempo todo, basicamente. É verdade que existem grupos neonazistas na Ucrânia, como existem na Rússia também. Então, isso é mentira e pronto. O Zelenski é judeu, perdeu parentes durante o holocausto. A gente nem deve dar ouvidos para isso.”

O historiador e professor de relações internacionais da PUC-Rio João Daniel segue a mesma linha de raciocínio de Lehmann e explica o frágil argumento do presidente russo para a guerra.

“Existe sim um grupo neofascista forte na Ucrânia, não é uma mentira absoluta do Putin. Porém, isso é uma hipocrisia porque também existe n Rússia. […] Dizer que há fascismo ou nazismo na Ucrânia é não olhar para o próprio umbigo.”

Lehmann afirma que é difícil cravar o grau de força que grupos neofascistas possuem tanto na Rússia como na Ucrânia. O professor da USP ainda ressalta que a imprensa tem um papel importante na construção das histórias para atingir de maneira negativa a reputação dos seguidores de Putin ou Zelenski.

“O grau de força que os neonazistas têm em ambos os países é muito discutido. O que está público neste sentido, que temos de informação nesse momento, é pouco confiável, a meu ver. Depende de quem está lendo o que e quem quer acreditar em qual fonte.”

Euromaidan e o distanciamento entre os dois países

Entre os anos de 2013 e 2014, a Ucrânia passou por uma série de protestos de cunho político chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Os manifestantes nas ruas pediam a saída do presidente Viktor Yanukóvytch, que tinha ligações estreitas com o governo de Putin.

Os confrontos entre forças de segurança pública e manifestantes eram comuns, o que trouxe de volta à luz grupos neofascistas dispostos a ficar na linha de frente dos protestos para lutar, literalmente, contra os policiais ucranianos.

Para João Daniel, os indivíduos que confrontavam as forças de segurança gostavam da violência, andavam armados e tinham um histórico em brigas entre torcidas organizadas.

“Uma parte significativa desse pessoal é neonazista. E eles ganharam muita moral, muito prestígio. O pessoal do Dynamo Kiev, que é um time de futebol, ganhou muita popularidade. A partir daí, esses grupos começaram a ganhar força, começaram a se armar, começaram a ganhar popularidade. Viraram, inclusive, batalhões paramilitarizados.”

A ação destes grupos com características neofascistas inspiraram o deputado federal Daniel Silveira, acusado em 2021 pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por atos antidemocráticos. O político usou sua extinta conta no Twitter para dizer que era necessário “ucranizar” o Brasil, em alusão aos movimentos políticos que sucederam ao Euromaidan.

Nos anos seguintes, figuras relevantes da história da União Soviética, como Lenin, tiveram estátuas e outros símbolos atacados por grupos neofascistas ucranianos.

Após a queda de Yanukóvytch, em 2014, Petro Poroshenko foi eleito presidente pelo povo ucraniano e teve um governo que se afastou ao máximo da Rússia e de símbolos ligados à União Soviética ou ao comunismo.

Neonazistas lutam pelos russos e ucranianos?

Os protestos populares que forçaram a queda de Yanukóvytch e o afastamento político entre Rússia e Ucrânia, também iniciaram um processo de distanciamento entre russos e ucranianos. Apesar de vizinhos e de dividirem boa parte de suas histórias, células de ódio nos dois países começaram a se formar.

Na Ucrânia, neofascistas criaram o conhecido Batalhão de Azov — grupo paramilitar que atua, em sua maioria, nos territórios separatistas de Donestk e Lugansk, próximo à fronteira com a Rússia. Este núcleo extremista, inclusive, possui um partido político, chamado Corpo Nacional.

Entretanto, estas figuras neofascistas e neonazistas não se encontram só do lado ucraniano, mas também do lado russo. O professor da PUC-Rio alerta para o símbolo Z, um dos símbolos da invasão russa da Ucrânia e que identificam veículos, aeronaves e equipamentos do exército da Rússia.

“Não há mentira, mas as coisas não são claras. O Putin usa isso como propaganda ideológica para invadir sem olhar que na Rússia, hoje em dia, as pessoas que usam o Z também são fascistas, defendem o fascismo.”

Lehmann ressalta ainda a gravidade da presença de grupos extremistas na Europa. Entretanto, não acredita que a presença de neofascistas em um país justificaria a invasão.

“Temos neonazistas lutando na ucrânia contra a Rússia? Temos. Sem a menor dúvida. Temos neofascistas russos lutando contra a Ucrânia? Sem dúvida, temos. Então não vejo isso como uma excepcionalidade. Evidentemente preocupante, como a existência de grupos neonazistas em qualquer país é muito preocupante e deve ser enfrentado. Isso em nenhuma circunstância, hipótese, justifica uma invasão”, conclui Lehamnn.