Caso Kiss: vítimas viveram processo penoso ao relembrar tragédia, lembra especialista

Mesmo com desejo de ter um desfecho para o incêndio, psiquiatra explica que vivenciar de novo é dolorido e pode gerar mais trauma

Foto: Ricardo Giusti/Correio do Povo

Os últimos dez dias foram marcados pelo julgamento dos quatro réus acusados pelo incêndio na boate Kiss, quase nove anos atrás, em Santa Maria (RS). Enquanto o Brasil reviu as cenas chocantes da tentativa de resgate dos jovens na casa noturna, as famílias que perderam filhos – foram 242 mortos ao todo – e parte dos mais de 600 sobreviventes tiveram de reviver e remexer em um trauma profundo.

A psiquiatra Luciana Siqueira, do Programa de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (IPq/HC-USP), explica que, mesmo sendo importante e necessário, todo esse processo “tem um preço penoso, que pode desencadear lembranças muito intensas e trazer de volta a sensação que tudo aquilo está ocorrendo novamente”.

Cerca de 30 familiares estiveram em Porto Alegre para acompanhar pessoalmente o tribunal do júri, que terminou nessa sexta-feira com os quatro réus sendo considerados culpados por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar). Segundo o Tribunal de Justiça, a Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Santa Maria credenciou 55 pessoas para entrar no Foro Central 1, na capital gaúcha.

A mãe da vítima Rafael Carvalho, Fátima de Oliveira Carvalho, ressalta a importância de estar presente no julgamento ao lado de outros familiares. “Reviver é difícil, mas é necessário. Vim pelo meu filho e por todos os outros. Quis estar aqui com as outras mães que estão na mesma situação que eu”.

A médica observa a importância dessa união nesse momento de reviver o passado. “Há o sofrimento dentro do grupo, pessoal, de cada um. Mas há outras questões importantes no grupo do qual os familiares passaram a fazer parte”, pondera. “De certa forma, um sabe o que o outro está passando. Frente ao problema comum, ter uma união e o apoio do outro é importante”, salienta a psiquiatra.

Situação das vítimas interrogadas

Foram ouvidas 28 pessoas, entre testemunhas, vítimas e quatro réus. No caso dos sobreviventes do incêndio, reviver o dia 27 de janeiro de 2013 é ainda mais difícil.

“Fica tudo mais grave porque a situação é revivida ao lado de outras pessoas que também passaram pela mesma situação. Muitas vezes acaba trazendo uma sensação de forte emoção, mobiliza e fica um pouco difícil de a pessoa levar adiante o depoimento, mesmo que ela tenha esperado muito por isso”, relata Luciana Siqueira.

De acordo com a promotora Lucia Helena Callegari, a situação se agravou pelo modo que algumas defesas interrogaram as vítimas. “Elas foram massacradas por algumas das defesas, essas pessoas já estão fragilizadas e esse massacre não é legal”.

Fátima acrescenta: “acho quase criminoso usar das fragilidades que cada sobrevivente está passando em prol do seu benefício”.

As consequências de reviver o trauma

Cada pessoa reage de uma forma diferente ao julgamento. A psiquiatra explica que é comum haver um novo trauma após reviver momentos de dor. “Algumas fazem questão de acompanhar o julgamento, mas pode acontecer de a revivência se tornar um novo trauma em cima do que já existia”.

“Em outros familiares ou vítimas pode desencadear flash back, perturbações do sono, do apetite e da saúde de forma geral, aparecendo os sintomas que chamamos de somáticos, como enxaqueca, dores de cabeça, mal estar gástrico por conta do estresse a que estão sendo submetidos”, alerta a médica.

Para Fátima, mãe de Rafael Carvalho, todo o sofrimento vivido nesses dez dias teve razão de existir. “Não é fácil estarmos aqui. Estamos pelos nossos filhos, para honrar nossos filhos, eles não podem ter ido em vão. Tem que ter uma resposta para que tenhamos uma sociedade melhor. Nós pensamos que isso não pode se repetir e para isso precisa ter justiça”, desabafa ela.

Vítimas e familiares após a sentença

Da mesma forma que as reações de reviver um trauma são individuais, Luciana Siqueira ressalta que o resultado de um julgamento também gera consequências diferentes em cada um dos familiares ou vítimas.

“O que imaginamos é que quando a justiça é feita, de alguma forma a pessoa consegue dizer o que aconteceu e ela se sente ouvida, legitimada, pode trazer um senso de justiça e ser um passo de melhora. É uma resolução para que a pessoa consiga ou virar a página ou ter o ‘vida que segue’ vamos dizer assim”, pontua a médica.

“Mas para outros não muda nada. A vida é o bem maior e que não vai ser um julgamento que não vai trazer ninguém de volta. É um ritual, é algo que a justiça permite. É algo civilizatório, quando certas coisas acontecem, é necessário apurar se houve o crime, reconhecer e dar devida legitimidade aos fatos”, finaliza a psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo.