Este domingo marca a passagem do Dia Internacional da Alfabetização, data instituída pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), no século passado (em 1966), para incentivar o pleno letramento da população internacional. Apesar da melhoria do acesso às escolas, nos últimos 53 anos em diversos países, ainda existem em todo planeta 750 milhões de jovens e adultos que não sabem ler nem escrever. Se todas essas pessoas morassem em um único país, a população só seria inferior a da China e da Índia, que têm cada uma mais de um bilhão de habitantes. A nação hipotética do analfabetismo tem mais do que o dobro de toda a população dos Estados Unidos. Nesse contingente, duas de cada três pessoas que não sabem ler são mulheres.
Ainda segundo a Unesco, o problema do analfabetismo perdurará por muito tempo. No ano passado, 260 milhões de crianças e adolescentes não estavam matriculados nas escolas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, havia 11,3 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade. Se todos residissem na mesma cidade, este lugar só seria menos populoso que São Paulo – a capital paulista tem população estimada de 12,2 milhões.
A taxa do chamado “analfabetismo absoluto” no Brasil é de 6,8%. Como ocorre com os dados internacionais, o analfabetismo não atinge a todos da mesma forma. “Na análise por cor ou raça, em 2018, 3,9% das pessoas de 15 anos ou mais – de cor branca – eram analfabetas, percentual que se eleva para 9,1% entre pessoas de cor preta ou parda. No grupo etário 60 anos ou mais, a taxa de analfabetismo das pessoas de cor branca alcança 10,3% e, entre as pessoas pretas ou pardas, amplia-se para 27,5%”, descreve nota do IBGE.
Netos e avós
Segundo os pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil, o volume de analfabetos é bastante alto e não diminui por falta de investimentos na Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Para um gestor público, prefeito, governador, interessa muito mais investir em educação básica, não na Educação de Jovens e Adultos, porque é uma parcela muito pequena”, critica Maria do Rosário Longo Mortatti, professora titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e também presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização. Segundo ela, o investimento no EJA é “secundarizado”.
Por traz desse comportamento, há antigo raciocínio entre gestores públicos de que a “dinâmica demográfica”, com a renovação das gerações, extinguiria o analfabetismo absoluto no passar dos anos, conforme lembra Maria Clara Di Pierro, professora de Educação da Universidade de São Paulo (USP), especializada em políticas públicas de jovens e adultos.
“Esse raciocino não é novo. O ex-ministro [da educação] já falecido Paulo Renato usava muito esse argumento, dizendo ‘vamos concentrar os nossos esforços nas novas gerações. A sucessão geracional se encarregará de eliminar o analfabetismo’. Alguns pesquisadores e jornalistas compartilham essa visão, mas ela é duplamente equivocada”, aponta.
“De um lado, porque a gente continua produzindo analfabetismo, não se trata apenas de um resíduo do passado e os idosos estão vivendo mais. De outro lado, nós temos o analfabetismo funcional mediado pelo sistema educativo. Então, essa esperança ‘vamos deixar os velhinhos morrerem para acabar com o problema’ é uma ilusão, e não faz frente ao que temos de enfrentar”, complementa Di Pierro.
A mesma visão tem a professora Francisca Izabel Pereira Maciel, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela ressalta que o poder público “não pode descuidar do analfabetismo absoluto” e que “é direito das pessoas aprender a ler e escrever”.
Ainda que o analfabetismo absoluto atinja predominantemente os mais idosos, a professora Francisca Izabel salienta que em muitas famílias são os avós que cuidam dos netos enquanto os pais trabalham. A falta de escolaridade entre os mais velhos dificulta o acompanhamento escolar e pode desestimular o interesse pelos estudos entre os mais novos.
Analfabetismo funcional
As estatísticas do IBGE consideram as pessoas com 15 anos ou mais que foram declaradas como analfabetas em pesquisa periódica de amostra domiciliar. Os números, no entanto, podem ser ainda mais graves se for medida a “capacidade de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela” – como faz o estudo Indicador de Alfabetismo Funcional, elaborado pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa.
Testes cognitivos aplicados no ano passado em 2.002 pessoas residentes em áreas urbanas e rurais de todo o país verificou que 29% das pessoas podem ser consideradas analfabetas funcionais e que não superam o nível rudimentar de proficiência. Apenas 12% da população é considera “proficiente”.
Roberto Catelli Jr., coordenador Adjunto da Ação Educativa, explica que o analfabeto funcional é considerado a pessoa “capaz de identificar palavras, números, assinar o nome e ler frase. Mas não consegue realizar tarefa se precisar ler um pouco mais que isso – um parágrafo de um texto da vida cotidiana”, como recorte de jornal, um cartaz ou até mesmo uma receita de bolo.
A proporção de analfabetos funcionais no Brasil totaliza 38 milhões de pessoas. O volume dessa população é maior que quase todos os estados brasileiros, só perde para o total de residentes no Estado de São Paulo (41,2 milhões). Ouça o debate sobre alfabetização no programa Rádio Sociedade, da Rádio MEC:
Política de alfabetização
Os problemas de alfabetização também são assinalados pelo Ministério da Educação (MEC) que está iniciando a implantação da Política Nacional de Alfabetização (PNA). O caderno de apresentação da PNA consolida uma série de indicadores educacionais, entre eles os resultados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), feita em 2016, que contabiliza que “54,73% de mais de 2 milhões de alunos concluintes do 3º ano do ensino fundamental apresentaram desempenho insuficiente no exame de proficiência em leitura”. Na mesma pesquisa, um terço dos alunos apresentavam níveis “insuficientes” em escrita.
Outros dados compilados pelo MEC são os resultados do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes, mais conhecido pela sigla Pisa , que em inglês significa Programme for International Student Assessment. Conforme a avaliação, o Brasil ficou em 59º lugar em leitura num ranking de 70 países. “Os resultados obtidos pelo Brasil nas avaliações internacionais e os próprios indicadores nacionais revelam um grave problema no ensino e na aprendizagem de leitura, de escrita e de matemática. É uma realidade que precisa ser mudada.
Por isso a Política Nacional de Alfabetização pretende oferecer às redes e aos alunos brasileiros, por meio de programas e ações, a valiosa contribuição das ciências cognitivas, especialmente da ciência cognitiva da leitura. Uma política de alfabetização eficaz terá reflexos positivos não apenas na educação básica, mas em todo o sistema educacional do país”, aponta o ministro Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub em nota de apresentação da PNA.
Desigualdade social
Conforme os especialistas ouvidos pela Agência Brasil, o analfabetismo resiliente no Brasil, absoluto ou funcional, reflete a exclusão do passado, faz sombra ao presente e mina possibilidades do futuro. “A discussão sobre analfabetismo se inicia no século 19 com o Brasil independente querendo se tornar nação como uma questão inicialmente sobre quem tinha direito. Era uma questão de voto. Quem podia votar”, ressalta Maria do Rosário Longo Mortatti, professora da Unesp.
“Existe uma desigualdade social que se espelha na própria desigualdade educacional. As oportunidades não são iguais para todos. Existe uma desvalorização da educação para pessoas de baixa renda”, lamenta Roberto Catelli Jr., da Ação Educativa, ao pensar sobre as dificuldades atuais do país acabar com o analfabetismo.
“Chegar à idade adulta na condição de analfabeto numa sociedade letrada predominantemente urbana, grafocêntrica [centrada na escrita] é uma situação que ocorre por processo de exclusão social que são múltiplos, que não são estritamente educacionais”, opina a professora Maria Clara Di Pierro, da USP, prevendo a perpetuação do quadro social. “Não é um problema estritamente educativo. É um sintoma cultural de um processo mais amplo de exclusão. Reverter isso para os grupos mais vulneráveis requer mais políticas intersetoriais”, aconselha.