Exatos quatro meses após o assassinato da vereadora Marielle Franco, um grupo de mulheres organizou hoje (14) uma manifestação para cobrar a reativação do Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) da Baixada Fluminense. Também foi lançado um abaixo assinado virtual para cobrar uma resposta do governo estadual, que é o responsável pelo espaço. Localizado em Nova Iguaçu, no bairro da Luz, o imóvel chegou a ficar abandonado e foi ocupado por uma organização não governamental (ONG) que oferece à população cursos na área da cultura.
Segundo Luciene Medeiros, integrante do Fórum Regional dos Direitos da Mulher da Baixada Fluminense, o CIAM foi implantado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e inaugurado em 2008. O projeto inicial previa, como contrapartida, que uma creche e uma estação de trem fossem construídos pelos governos do estado e do município, mas os compromissos não foram cumpridos.
“A Baixada Fluminense é uma região marcada pela violência contra a mulher. E as maiores vítimas são negras e pobres. Hoje fazem quatro meses da morte de Marielle e não sabemos quem cometeu o crime. O descaso com essa violência no estado nos preocupa”, diz Luciene. De acordo com dados do Dossiê Mulher divulgado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2017, 94 mulheres foram vítimas de homicídios dolosos na Baixada Fluminense. Além disso, foram registradas 9.537 ocorrências de lesão corporal.
O CIAM foi concebido não só para atender diretamente as mulheres, como também para ser um espaço de articulação de toda a rede de atendimento dos 13 municípios da região. Em 2016, porém, o imóvel foi desocupado. “O governo foi submetendo este espaço físico a um processo de degradação. Deixou de capinar, não trocou as lâmpadas queimadas. Aos poucos, inviabilizou o uso do espaço. Restou uma pequena equipe que está trabalhando com condições mínimas em uma sala atrás da delegacia de Nova Iguaçu, no bairro da Posse”, critica Luciene.
A assistente social Iara Tavares atuou no CIAM entre 2012 e 2016. Ela conta que, em 2015, começou a ter atraso no pagamento dos salários e, no ano seguinte, a maioria dos profissionais foram dispensados. “Nós promovíamos cursos de qualificação com as equipes técnicas que atuam na região, formadas por psicólogas, advogadas e assistentes sociais. E aqui, até 2016, atendemos diretamente mais de 3 mil mulheres”, afirma.
Ocupação cultural
Após um período de abandono, o imóvel foi ocupado pela ONG Associação Fábrica de Atores e Material Artístico (Fama), também conhecida como Escola Livre Fama. Aproveitando a sigla que dá nome ao espaço, a entidade implantou no local o Centro de Integração de Artes Múltiplas. A ocupação não é formalizada. “Antes de entrarmos, procuramos autoridades para tentar falar desse espaço, mas ninguém nos recebia. Nós investimos mais de R$7 mil para recuperar o imóvel, tenho todas as notas guardadas. Além disso, contamos com mão de obra voluntária e material doado”, conta Alexandre Gomes, agente cultural e diretor de teatro.
Segundo ele, a ONG atua há 17 anos na região e atualmente tem 373 alunos. Alexandre diz que a ocupação do espaço contou com o apoio da comunidade local, já que o imóvel estava servindo a usuários de crack e havia diversos relatos de assaltos nas redondezas. “Isso aqui poderia a qualquer momento virar um quartel de milícia. Porque nós sabemos que quando o governo não resolve a questão da segurança pública de um lugar, os milicianos assumem”.
De acordo com o agente cultural, a ONG se sustenta com mensalidades cobradas de alunos, bilheterias de eventos e apresentações teatrais, entre outras fontes. Diferente de outros projetos, os variados cursos ofertados no CIAM são gratuitos. Os interessados podem ter aulas, por exemplo, de maquiagem, teatro, fotografia e produção audiovisual. O único pedido é para que ajudem a manter as condições do imóvel e colaborem trazendo produtos de limpeza.
A aluna de maquiagem Ariana Souza, moradora do bairro, aprova o trabalho da ONG. “Eu trabalho como cerimonialista em eventos e casamentos. E está sendo muito bom para que eu aprenda a me maquiar melhor, considerando cor de pele, os tons. Deram um boa destinação a esse local, que estava abandonado. Era perigoso, escuro e reunia usuários de drogas. As pessoas do bairro vieram e ajudaram a limpar”.
Para Ariana, o trabalho permite que também as mulheres vítimas de violência sejam acolhidas. “As portas aqui estão abertas para todos. Uma mulher que esteja fragilizada pode se reencontrar em um curso de maquiagem, de depilação, de manicure. Pode sair daqui capacitada para conseguir um emprego e uma fonte de renda. E assim pode talvez parar de depender de um cara violento que pode matá-la”.
Reunião
Ontem (13), a prefeitura de Nova Iguaçu reuniu os envolvidos para debater o assunto. No entanto, não houve nenhuma decisão. Em nota, o município alega que o CIAM é de responsabilidade do governo estadual e que a creche deveria ter sido construída com recursos do governo federal, mas a obra foi suspensa devido ao corte de verbas.
A Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI) informou que não houve interrupção do atendimento oferecido pelo CIAM Baixada e que os serviços estão sendo prestados em novo endereço no bairro Alto Posse, em parceria com a Fundação da Criança e Adolescente (FIA). “A escolha do novo espaço ocorreu visando atender as diretrizes específicas para o funcionamento dos CIAMs e possibilitar, dessa forma, o atendimento adequado à mulher em situação de violência. Além disso, a localização do prédio é próxima aos serviços da rede de atendimento e de fácil acesso”, registra nota divulgada pela secretaria.
Durante a reunião na prefeitura, o Fórum Regional dos Direitos da Mulher da Baixada Fluminense recebeu a informação de que o governo estadual fez um acordo para que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro assuma o imóvel. O órgão confirmou, mas não garantiu a retomada dos serviços interrompidos. “A cessão tem o objetivo de ampliar o atendimento jurídico à população de Nova Iguaçu. O espaço também poderá abrigar a CIAM, caso o serviço seja restabelecido. Ressaltamos que a CIAM é um serviço de responsabilidade do governo estadual, não da defensoria”, disse o órgão em nota.
Solução
A ONG afirma estar aberta a discutir propostas de remanejamento, desde que o novo local seja adequado às suas necessidade. Do contrário, irão resistir. “Demos um pontapé para levantar a discussão em torno deste espaço. Não somos contra a manifestação, endossamos as causas feministas. Nosso grupo é formado por muitas mulheres guerreiras”, diz Alexandre. O Fórum Regional dos Direitos da Mulher da Baixada Fluminense também diz não ser contra o trabalho da ONG. “Inclusive defendemos que eles permaneçam atuando na região, fazendo o seu trabalho com os jovens do bairro. A nossa questão não é com eles e sim com o governo estadual e com o desmonte das políticas públicas. Este imóvel precisa atender a sua missão”, diz Luciene.
Na busca de uma solução, as mulheres recorreram ainda à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Presente no ato, o deputado estadual Waldeck Carneiro (PT) disse que a Alerj tentará auxiliar na interlocução com o governo e uma das possibilidades é prever recursos para 2019 na lei orçamentária. “A solução passa por ter criatividade e entender melhor como que essas duas políticas podem conviver. Seria interessante que as mulheres vítimas de violência, ao serem atendidas no CIAM, tivessem a possibilidade de ter uma atividade no campo da cultura”.