A inovação que o Rio Grande do Sul está iniciando ocorre a contragosto de algumas entidades. O vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuárias (Anffa Sindical), Marcos Lessa, diz que não há preocupação em relação à capacidade técnica e à ética dos profissionais, mas admite inquietação com a pressão que eles podem sofrer.
“Fiscalizar empresas sem a proteção governamental é complicado”, afirma. “Ou você sabe o que a empresa quer, ou você será demitido”, desconfia. Para Lessa, a ideia de terceirização não vingará no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento porque o Brasil sofreria embargos de importantes mercados, como do bloco europeu, que não permitem a delegação deste serviço à iniciativa privada.
O presidente da Associação dos Fiscais da Defesa Agropecuária do Paraná (Afisa), Rudmar Luiz Pereira dos Santos, considera “ilegal e inconstitucional” o fato de os Estados repassarem ao setor privado uma “atribuição indelegável”. “Diferenciar inspeção e fiscalização é um estratagema ardiloso, que coloca a segurança alimentar da população em risco”, critica. O dirigente lembra que está em andamento desde 2016, no Ministério Público do Paraná, um inquérito civil que apura a legalidade do credenciamento de pessoas jurídicas para a inspeção.
O veterinário do Laboratório de Virologia e Imunologia da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Paulo Ricardo Centeno Rodrigues, posiciona-se contra o novo modelo por entender que os profissionais da iniciativa privada, sem amparo do setor público, ficarão vulneráveis. “A pressão que os servidores públicos sofrem já é enorme e vemos muitos boletins de ocorrência relatando ameaças e agressões”. relata. “Imagina a pressão que irá recair sobre os inspetores privados”, adverte. O veterinário acrescenta que, mesmo com o rigor da fiscalização federal nas grandes empresas exportadoras, não se impediu casos de fraudes, como o revelado pela Operação Carne Fraca em 2017.
Centeno integrava a última diretoria eleita do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV), hoje destituída. Ele diz que a sua chapa tinha como compromisso de campanha lutar contra a terceirização. No momento em que o assunto começou a ser controverso dentro da diretoria, Centeno conta que decidiu por renunciar, o que acabou ocorrendo efetivamente em 23 de abril deste ano.
Outros estados já usam o modelo
O modelo de inspeção privada que agora começa a funcionar no Rio Grande do Sul já é realidade em Santa Catarina e no Paraná. Juntos, os três Estados têm uma das maiores taxas de abates de frangos e suínos do país. Fora do Sul, apenas o Espírito Santo tem uma estrutura semelhante. Santa Catarina foi pioneira em credenciar veterinários privados para o serviço de inspeção, em 2009.
A Secretaria da Agricultura catarinense criou normativas próprias, dentro do Regulamento Estadual de Inspeção de Produtos de Origem Animal, para viabilizar o modelo. Atualmente, 400 veterinários estão habilitados ao serviço de inspeção, vinculados a 14 empresas credenciadas, e não há mais nenhum servidor público presente na inspeção de produtos de origem animal. Na fiscalização, atuam 40 veterinários da Secretaria da Agricultura.
No Paraná, a inovação foi regulamentada em 2014, por meio de portaria. Atualmente, há 55 veterinários do setor privado atuando na inspeção. Segundo o gerente de Inspeção de Produtos de Origem Animal da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar), Carlos Henrique Siqueira Amaral, somente há servidores públicos executando a inspeção nos casos em que houve cedência das prefeituras. Ele avalia que os objetivos têm sido alcançados porque atualmente não há impedimentos para registro de novos abatedouros e, ao mesmo tempo, o sistema conta com “profissionais capacitados e dedicados em prol da segurança alimentar”.
Amaral explica que a Adapar possui controles que vão desde a regularização trabalhista dos inspetores até a atuação deles nos estabelecimentos. Quando a fiscalização constata qualquer falha na inspeção, a correção, segundo ele, é quase imediata, motivada pela preocupação das pessoas jurídicas em manterem seus credenciamentos. “Não é a aprovação em um concurso público que determina a idoneidade do processo ou do profissional”, afirma.
O assunto tem ganhado espaço inclusive no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), onde a possibilidade de terceirização é admitida. Na Expointer do ano passado, o ministro Blairo Maggi informou que estava em elaboração um estudo para identificar que áreas demandam fiscalização obrigatória de agentes concursados, com poder de polícia, e quais não necessitam de atuação do poder público. Sinalizou que o Mapa poderia seguir o rumo adotado pelos governos do Sul. “Vamos verificar o que dizem as regras dos acordos internacionais que foram feitos”, anunciou, na época. Questionado sobre o estudo durante a semana, o Mapa não se manifestou.