Sem fornecimento de água, moradores da Ilha da Pintada iniciam limpeza de residências

Areia arrastada desde o leito do Rio Jacuí formou dunas de quase dois metros na avenida Nossa Senhora da Boa Viagem

Guaíba recua na Ilha da Pintada Pedro Piegas/CP

Sob intensa movimentação de pessoas e veículos, moradores e empresários da Ilha da Pintada, no bairro Arquipélago, em Porto Alegre, dedicavam-se, na manhã deste domingo, a tentar limpar residências e espaços de comércio da região. A tarefa era realizada mesmo sem haver ocorrido o restabelecimento do fornecimento de água. Pelas ruas, a destruição é visível em todas as casas, inclusive nas mansões à beira do rio Jacuí. Automóveis inutilizados também caracterizam o cenário.

“Estamos aguardando um caminhão-pipa com 10 mil litros de água”, diz o comerciante Filipe Araújo da Silva, 35 anos, com resquícios de areia da cabeça aos pés. Silva e um grupo de voluntários dedicavam-se a retirar a lama de uma casa na rua Dr. Salomão Pires Abrahão, nas proximidades da sede da Colônia de Pescadores Z5. A residência, de acordo com Silva, tornou-se o “QG de abastecimento da ilha”, organizado pela população local. “Agora, vamos instalar aqui uma cozinha comunitária”, anuncia. Silva garante que a iniciativa deverá oferecer mil refeições por dia, a partir de terça-feira.

Barraca improvisada

Cerca de 50 metros adiante, às margens do rio Jacuí, o mecânico João Luiz Cabral Ferrão, 63 anos, e o operador de guindaste Jorge Renê Leal, 60 anos, estão acampados sobre uma das dunas de quase dois metros de altura que tomaram conta da avenida Nossa Senhora da Boa Viagem, que acompanha a orla.

As dunas foram formadas com areia arrastada desde o leito do Jacuí, do tipo utilizado como agregado miúdo na preparação do concreto. A areia prevalece onde antes havia terra ou mesmo água. Botes de pescadores estão soterrados, alguns exibindo a proa ainda amarrada a árvores ou outros suportes. “Estamos vendendo por R$ 90 o metro cúbico”, brinca Leal, referindo-se ao minério.

Instalados há três dias em uma barraca improvisada com estrutura de taquara e lona plástica preta, o mecânico e o operador de guindaste não têm mais casa para limpar. A enchente acabou com os imóveis. Pedem socorro. “O lance da água e da comida não falta. Isso tem bastante. Falta é agasalho, cobertor e colchão. O inverno está chegando. Estamos com frio”, afirma Leal, de olho numa panela na qual cozinha feijão, em fogo de chão, com lenha, protegido por tijolos.

Conhecido na ilha como João do Caiaque, Ferrão reclama da dificuldade de dar andamento a solicitações para coisas “que são de nosso direito”, principalmente para quem não tem acesso à internet ou com pouco conhecimento para o uso de dispositivos de informática.

Única farmácia

Onde não há areia, é a lama e a água que tomaram conta, como ocorre na farmácia do comerciante Cássio Braga, 34 anos, proprietário do único estabelecimento do tipo existente na Pintada. Com bandeira de uma conhecida rede de farmácias, o empreendimento foi inaugurado há cerca de dois anos. Braga calcula em R$ 400 mil o prejuízo com a devastação total do negócio. “E ainda tenho muita conta a pagar, além de quatro funcionários. Estamos esperando ajuda do governo”, diz.

A aposentada Olga Molina Leal, 62 anos, limpava a casa de dois pisos com a água lamacenta acumulada na piscina. O imóvel dista mais de 300 metros da margem do Jacuí. Nem a distância nem o nível mais elevado do terreno livraram a construção de ser inundada. De acordo com Olga, três dezenas de pessoas se refugiaram no segundo piso da residência no início da enchente. “Foram recolhidos com jet ski e levados para o Gasômetro”, afirma.

A moradora relata o aparecimento de um número considerável de gatos na casa, nos últimos dias, e diz que pretende retornar à ilha, nesta semana, para ajudar vizinhos na árdua tarefa de tentar recuperar as condições das próprias casas. “Como as pessoas idosa vão fazer isso sozinhas? Tem de ser por mutirão, com a ajuda de todos”, diz.