Ruas inquietas: como é andar pelo Centro Histórico de Porto Alegre à noite

Rondas policiais, andarilhos e pessoas que não querem deixar suas casas compõem a rotina da região alagada pelo Guaíba

Patrulhamento ostensivo é constante no Centro | Foto: Fabiano do Amaral/CP

É como se o Centro Histórico de Porto Alegre fosse mais de um ao mesmo tempo. Aquele do passado, movimentado, tem apenas as fachadas por lembrança. São quadras inteiras vazias e contornos de prédios distorcidos no reflexo da água que expulsou, ainda que não por completo, a vida das ruas mais próximas do Guaíba. Ao pôr do sol, seria um belo espetáculo caso não retratasse a agonia de uma cidade, de um Estado inteiro.

Do centro que ainda pulsa, com lojas, hospitais, bares e moradias ocupadas, descem pessoas a todo instante na direção da água. É uma peregrinação que perdura enquanto a luz natural oferece coragem. Na esquina da Caldas Júnior com a rua dos Andradas é comum observar a chegada de carros, com ocupantes que chegam em busca de fotografias. O caminho é livre a pé até onde o Guaíba permite, mas ele cobra suspiros de quem o visita.

“Impressiona, eu não tinha vindo aqui ainda. Preocupa ver os prédios históricos alagados, o silêncio, essa sujeira toda”, reflete o motorista Robson Azevedo Cunha, 38 anos, ao ver peixes mortos e até lixo hospitalar boiando naquela que antigamente era chamada de rua da Praia.

No Centro Histórico do presente, há quem observa e os que se aventuram dentro da água. O que para a maioria é material perdido após ser contaminado pelas redes de drenagem pluvial e cloacal, é tesouro para outros. Na tarde de ontem, duas pessoas que preferiram não ser identificadas reviravam a sujeira com varetas. O achado da vez para a dupla foi um lote de capas para smartphone, todas dentro de embalagens, boiando na água. “Esta vou pegar para usar, as outras tentar vender”, contou um dos “caçadores”.

Mais adiante, na esquina da Andradas com a General Bento Martins, a aposentada Zaira Lessa, 91 anos, apontava para o apartamento em mora há meio século, ao lado da Casa de Cultura Mario Quintana, o qual deixou às pressas há quatro dias. “É lá onde estão aquelas duas luminárias. No começo eu não queria sair, eu estava em com meus dois filhos, até que saímos de barco, agora estou na casa de uma neta”, recorda.

No entorno da Igreja Das Dores e do QG da Brigada Militar, além de moradores e curiosos, barcos e caminhões tomam as ruas. É parte do trabalho de segurança e do apoio aos resgatados e voluntários que atuam na região. Já se aproximava a noite quando um grupo de soldados do Exército Brasileiro encerrava uma missão de recuperação de equipamentos da Comissão Regional de Obras do Comando da 3ª Região Militar, na Rua Sete de Setembro. Maquinas, mesas e cadeiras deixaram o prédio e foram levados de barco até um caminhão. Os remos agitando a água e a conversa entre os militares eram os únicos barulhos naquela quadra.

Soldados do Exército fazem resgate de equipamentos na área alagada Soldados do Exército fazem resgate de equipamentos na área alagada | Foto: Fabiano do Amaral
Ao escurecer, o Centro se transforma em duas porções ainda mais distintas: uma com eletricidade e outra iluminada apenas pelo luar. A noite tornou evidente quem permanecia em seus apartamentos e os comércios que resistem abertos por meio de gerador de energia.

As quadras entre a rua dos Andradas e a avenida Independência viram uma espécie de fronteira entre a zona habitada e a área em que não é recomendado andar após o anoitecer. Há policiais por toda a parte. São PMs em duplas, de carro, a pé ou a cavalo, viaturas da Força Nacional e Guarda Municipal de Porto Alegre e de cidades de outros estados, como de São Paulo e do Paraná. Tudo é monitorado a todo instante.

A transição do trecho com luz para o escuro amplia sensações. O cheiro forte que a água exala, o silêncio quebrado de repente por gritos distantes ou sons de motores despertam uma permanente sensação de alerta. Na avenida Otávio Rocha, barulhos de portas batendo vindos do alto de prédios indicam a presença de companhia. Nas janelas, lanternas de smartphones atestam a resistência de quem não quis deixar a região. “Tenho comida e água, vou ficar até o Guaíba baixar”, prometeu o Eduardo Conceição de Oliveira, 54 anos, enquanto suas palavras ecoavam solitárias pelo quarteirão.

Quem chega e quem sai é abordado por agentes de segurança que mantém rondas ostensivas 24 horas por dia, não apenas no Centro Histórico, mas também na região do Quatro Distrito. Policiais armados do 9º BPM circulam de barco em ações que já resultaram em aproximadamente uma centena de prisões por furtos e arrombamentos. O número mostra o resultado do trabalho, mas muitas empresas e entidades públicas mantêm segurança particular nos prédios evacuados. Um destes vigilantes, que pediu para não ser identificado, diz que permanece dia e noite no prédio de uma empresa na avenida Voluntários da Pátria, buscando evitar a presença de criminosos. “A gente vê muita gente andando por aqui de madrugada. É nestas horas que o silêncio conta muita coisa e a escuridão vê o que não deveria ver”, romantiza.

Próximo da Praça Quinze de Novembro, o único ponto de luz visível vem de uma tradicional galeria comercial, mantida por gerador. Não há ninguém na rua e a iluminação não fornece mais que dois metros de visão a quem olha na direção do Largo Glênio Peres. Eis que da escuridão surgem pessoas vindas de dentro da água carregando sacolas molhadas; foi quando suas lanternas se misturam ao vermelho emitido pelo vermelho intenso e o farol de uma viatura da Guarda Municipal.

Ao menos duas foram abordadas por agentes e posteriormente liberadas. Ao que tudo indica, apenas pessoas que convivem com o risco à saúde e à segurança pessoal por não quererem deixar a região, que tem muitos dias e noites semelhantes até que o Guaíba dê a tão esperada trégua para que o Centro Histórico do futuro possa surgir.