Com a missão do pensamento independente, que vem como uma herança desde o primeiro editorial, publicado em 1895, o Correio do Povo se mantém até hoje, 128 anos depois, com o objetivo de contar com credibilidade e imparcialidade os fatos que escrevem a história do Rio Grande do Sul e do país. É aquele editorial, que está exposto nas paredes dos corredores do Edifício Hudson, sede do jornal, no coração da capital gaúcha, que referencia o trabalho responsável realizado durante mais de um século pelos profissionais que integram as equipes do Correio do Povo. A trajetória, que começou no final do século XIX, soma-se à história do Estado e ajuda a contar os passos do desenvolvimento gaúcho.
Poucos meses após o final da Revolução Federalista, o sergipano Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior, com 27 anos à época, fundou o Correio do Povo. Durante três anos, a guerra dividiu o Rio Grande do Sul entre republicanos e federalistas, criando um clima tenso de polarização política. Com o objetivo de se manter imparcial, o Correio surgiu declarando-se “independente, nobre e forte”. Em 1913, com o falecimento de Caldas Jr., a viúva Dolores Alcaraz Caldas deu sequência ao trabalho e conseguiu manter a saúde financeira da empresa. De 1924 a 1927, o jornal foi dirigido por José Alexandre Alcaraz, irmão mais jovem de Dolores, passando, após, para Fernando Caldas, filho do primeiro casamento de Caldas Júnior, que assumiu a direção do jornal a convite de Dolores.
Depois disso, em 1935, Breno Alcaraz Caldas passou a dirigir o jornal com a meta de manter o caráter independente. As mudanças de proprietário para Renato Bastos Ribeiro, em 1986, e Grupo Record, em 2007 (atual gestão), mantiveram o caráter independente da linha editorial. O novo diretor presidente do Correio do Povo, Marcelo de Sousa Dantas, assumiu no último dia 9 de setembro. Ele destaca a relevância do jornal para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. “Os 128 anos só vêm a atestar que o Correio do Povo tem sido importante para o Estado como o Estado tem sido importante para o Correio do Povo. É uma grande parceria, que perdura todos esses anos. Esperamos que se mantenha para o desenvolvimento do Estado. É um veículo muito importante para o povo gaúcho.”
Com base forte no passado, mas com olhos no futuro, Dantas acredita que a história do jornal serve também como balizadora. “É importante vermos os erros e acertos para, assim, tomarmos as decisões. Somos um veículo atualizado, que está na crista da onda do digital e pretendemos, chegando agora, fazer investimentos em novas tecnologias e buscar torná-lo ainda mais atual e competitivo no mercado.” O diretor presidente salienta o compromisso do Correio do Povo com os colaboradores, leitores, mercado e autoridade. “Reitero o nosso compromisso com a sociedade, de nos mantermos isentos na notícia e empenhados em informar a população da melhor forma possível”, reforça.
Jornalismo Responsável
São quase 38 anos nos quais o diretor de Rredação, Telmo Flor, dedica-se ao jornalismo no Correio do Povo. Estar inserido no ambiente da construção da informação há tanto tempo evidencia a experiência de quem passou por muitas mudanças. “Tive a oportunidade de fazer a transição desde a máquina de escrever. Vivi a primeira revolução tecnológica com a chegada dos computadores, antes mesmo da Internet. Depois, a adoção da impressão simultânea em vários parques gráficos, com transmissão via satélite. Após, a Internet, que mudou profundamente todo nosso setor e impactou diretamente no trabalho e no modo de fazer jornal.”
Foi gratificante, conforme Telmo, acompanhar, fazer e até liderar, em alguns momentos, as transformações de um jornal com tamanha tradição. “A cada momento temos um novo desafio e tem sido assim desde que comecei.” Algumas coisas, como a história do jornal, facilitam o enfrentamento dos percalços. O primeiro editorial do Correio do Povo, publicado em 1º de outubro de 1895 pelo fundador Francisco Antônio Caldas Júnior, é citado pelo diretor de redação como base importante para o trabalho de cada dia. “Esse editorial era extremamente moderno para a época e estabelecia as bases conceituais e éticas com que o jornal deveria se portar ao longo de sua história. “Isso facilita as coisas porque sempre temos uma referência que vem sendo seguida por gerações de jornalistas que trabalharam aqui.”
Novas questões tecnológicas, como a inteligência artificial, apresentam-se para incentivar transformações. “Nosso papel é se comportar nesse novo mundo com os pés assentados na credibilidade e na história de 128 anos, para que possamos entregar para os leitores conteúdo humano e não robótico. Que possamos usar essas novas ferramentas para qualificação”, diz.
Editorial de 1º de outubro de 1895
Ficam definidos em poucas linhas os compromissos com que esta folha entra para o convívio do jornalismo rio-grandense. O Correio do Povo será noticioso, literário e comercial, e ocupar-se-á de todos os assuntos de interesse geral, obedecendo à feição característica dos jornais modernos e só subordinando os seus intuitos às inspirações do bem público e do dever inerente às funções da imprensa livre e independente.
Como seu título indica, será uma folha essencialmente popular, pugnando pelas boas causas e proporcionando aos seus leitores informações detalhadas sobre tudo quanto vá diariamente ocorrendo no desenvolvimento do nosso meio social e nos domínios da alta administração pública do Estado e do país.
Em política – somos pela República, e só alimentamos a aspiração patriótica de vê-la pujante, amada e próspera, capaz de fazer a felicidade deste grande país, fadado aos mais altos destinos.
Independente, nobre e forte – procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna. O Correio do Povo aspira a honra de se fazer uma folha lida e apreciada por todos, e para isso não poupará esforços nem medirá sacrifícios.
Jornal aberto a todas as manifestações de pensamentos, estas colunas estarão sempre francas a quantos queiram, com elevação de vistas, tratar de assuntos de interesse geral, discutindo ideias e opiniões sobre política ou literatura, indústria ou comércio, ciências ou artes. Este jornal vai ser feito para toda massa, não para determinados indivíduos de uma única facção.
Emancipado de convencionalismos retrógrados e de paixões inferiores, procurará esclarecer imparcialmente a opinião, apreciando com isenção de espírito os sucessos que se forem desenrolando e os atos dos governantes, para censurá-los quando reprováveis, para aplaudi-los quando meritórios. Com tais intuitos, de que jamais se apartará, o Correio do Povo espera poder conquistar as simpatias do público, que o verá sempre disposto.
Histórias de quem há décadas faz o Correio do Povo
Deroci Euzébio da Silva, de 76 anos, o seu Deroci, lembra com riqueza de detalhes do primeiro dia em que chegou ao Edifício Hudson, que abriga o Correio do Povo desde 1943, para trabalhar. Era uma manhã chuvosa de segunda-feira, quando, às 8h do dia 1º de junho de 1972, apresentou-se para integrar a equipe de manutenção. Desde aquele momento, há 51 anos, todo dia que chega para trabalhar é, para ele, o primeiro. E é essa a motivação que ele passa para os mais novos: fazer o seu melhor a cada amanhecer. “Minha função vai de arrumar um banheiro até consertar um telhado, faço de tudo um pouco”, comenta.
O início da carreira de seu Deroci começou em 1966 na fazenda de Breno Caldas, então diretor do Correio do Povo, onde atuava como pedreiro. Mais tarde, ao falar sobre a necessidade de emprego, pois já era pai de um menino, Caldas transferiu Deroci para o Correio do Povo. Atualmente, ele é o mais antigo empregado do Correio do Povo e foi também quem ajudou a erguer o restante do complexo que foi acrescentado ao histórico Edifício Hudson. “Aqui também é a minha segunda casa, cada pedacinho disso aqui ajudei a cuidar”, relata.
Pai de três homens e viúvo de Tereza Felisberta da Silva, seu Deroci comenta que foi o trabalho que propiciou a educação dos filhos. “O final do ano de 2021 terminou comigo, quando minha esposa faleceu. Me apeguei ainda mais ao trabalho, preenche meus dias.” Sobre o segredo de estar há mais de 50 anos no mesmo emprego, seu Deroci repete: “Eu chego aqui de manhã, bato meu ponto e considero como o meu primeiro dia. Não tenho 51 anos de empresa, tenho um dia de trabalho e tenho que cumprir com as minhas obrigações”, finaliza.
Quando eram impressas, além do Correio do Povo, a Folha da Tarde e a Folha da Manhã, Renato Guzzo, de 66 anos, já atuava no setor de Recursos Humanos (RH) da empresa. Hoje gerente de RH, Guzzo recorda os 44 anos de Correio do Povo com o privilégio da lembrança de quem realizava os pagamentos para personalidades como Mario Quintana. “O diretor de Recursos Humanos me dava um envelope com o dinheiro e eu ia ali no Hotel Majestic e ele estava lá escrevendo na máquina dele. Entregava o envelope e dizia: ‘Oi, seu Mário, vim lhe trazer o pagamento’. E ele dizia: ‘Deixa aí, guri’. Eu perguntava se ele não ia conferir, e ele respondia: ‘Para que eu vou conferir, se sempre está certo?’”, rememora.
Guzzo tinha 22 anos quando começou a trabalhar no Correio do Povo. “Quando cheguei, o jornal tinha em torno de 3,3 mil funcionários e eram quatro edições de jornais nesse prédio. Pela manhã, era a Folha da Manhã e o Correio do Povo, ao meio-dia, a Folha da Tarde e, ali pelas 17h, a Folha da Tarde Final”, conta. Aos poucos, as coisas foram mudando e Guzzo assistiu tudo de perto e viveu diferentes fases da empresa, como a crise de 1984 e a posterior reestruturação da empresa.
Entre tantas mudanças, de diretorias, governos e tecnologia, o que se mantém é o espírito familiar da empresa. “As pessoas começam a trabalhar aqui e criam um amor pela empresa. Há muitos funcionários antigos que, como eu, tiveram a primeira oportunidade e já se aposentaram aqui. O tratamento interno dos funcionários é como se fosse uma grande família”, finaliza.
É como uma escola do bom jornalismo que os funcionários Renato Bohusch, de 64 anos, e Hiltor Paulo Mombach, de 70 anos, definem o Correio do Povo. Jornalistas formados pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), eles lembram quando iniciaram na empresa, ainda quando circulavam os jornais Folha da Manhã e Folha da Tarde. Ambos viveram diretamente as mudanças tecnológicas: Renato no arquivo e Hiltor na editoria de Esportes.
Jornalista mestre em História, Renato Bohusch é chefe do arquivo fotográfico e do arquivo de pesquisa, além de ser editor da coluna “Há um Século”. Foi no dia 19 de janeiro de 1976 que entrou pela primeira vez como funcionário do Correio do Povo. “Eu distribuía nas redações os jornais de Rio de Janeiro e São Paulo, porque naquela época não era que nem agora e a gente se baseava muito em jornais do centro do país para ter notícia.”
Defensor do jornalismo responsável e do diploma, Bohusch diz que é o jornalismo que fez a diferença em sua vida. “O Correio do Povo é a minha segunda casa e me ensinou a ver o mundo de forma diferente. Enquanto profissional de comunicação você precisa saber interpretar aquilo que o mundo está mostrando, porque é você que reproduz para as pessoas a forma como acontecem as coisas.” Bohusch salienta que o Correio do Povo completa 128 anos com a força de um jornal que há mais de um século cultiva a credibilidade.
Com a experiência de quem trabalha há quase 50 anos no Correio do Povo, o jornalista e atual secretário de Redação, Hiltor Paulo Mombach, já passou por todos os continentes com o objetivo de levar para as páginas do diário informações sobre esporte. A essa história, somam-se mais de 40 viagens, entre Copas do Mundo e Olimpíadas, além de outros eventos esportivos. Recorda que demorou a aceitar as novas tecnologias, mas hoje não vive sem. “Não queria parar de escrever na máquina, demorei a confiar nos computadores. Só sei que um dia eu entrei no jornal e não tinha mais a máquina.”
Mombach confirma: o Correio do Povo é uma grande escola. “Sempre foi e quando eu entrei já era uma grande escola. As pessoas que entram se adaptam facilmente porque é simples, é uma escola que segue à risca os preceitos do bom jornalismo.” Além disso, foi na editoria de Esportes que viu seu trabalho e dos colegas fazer a diferença. “Passamos a observar os movimentos políticos nos clubes e hoje é uma característica dos veículos em geral”, destaca.
O edifício que abriga o jornal
“Era ainda o velho prédio original. Nenhum luxo. Tinha um certo ar de coisa antiga, e lá encontrei algumas pessoas de aspecto antigo.” Assim descreveu Erico Verissimo sobre sua primeira visita à redação do Correio do Povo, no edifício Hudson. No texto intitulado ‘O Correio do Povo e eu’, publicado no jornal em 1975, em comemoração aos 80 anos do periódico, ele ainda escreveu: “Não levei muito tempo para perceber que predominava no Correio do Povo um espírito de família. Para muitos daqueles funcionários, o ‘jornal’ era uma espécie de segundo lar”.
O edifício de dois andares que se destaca na esquina das ruas Caldas Junior e Andradas foi comprado pela Empresa Jornalística Caldas Junior em 1942 e reinaugurado em 1945. Desde sua criação, em 1895, as redações do Correio do Povo e da Folha da Tarde funcionavam no agora Centro Histórico de Porto Alegre. A instalação anterior era ao lado do edifício Hudson, na rua dos Andradas.
Os registros do prédio no acervo municipal da Prefeitura de Porto Alegre começam a partir da compra e reconstrução por Breno Caldas, proprietário na época. Antes da década de 20, os prédios municipais não tinham registros de construção, conta Camila Lacerda Couto, coordenadora da Gestão Documental da Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio.
A rua Caldas Junior
A rua Caldas Junior só passou a ter esse nome com a instalação da redação do Correio no edifício Hudson. Antes, a travessa que liga a avenida Mauá à rua Riachuelo recebeu outros nomes. Até 1800 foi denominado Beco do Inácio Manoel Vieira, em alusão a uma cidadão que edificou vários prédios na rua. Mas o nome pouco vingou. A passagem, com características muito diferentes com as de hoje, ficou conhecida mesmo como Beco Quebra-Costas – por conta da ladeira – e Beco da Fanha, este último por causa de um taberneiro fanhoso que morava na ruela. Em 1873, no entanto, a Câmara trocou a denominação popular de Beco da Fanha por Travessa Paissandu (Paysandu), em homenagem ao feito de armas da guerra contra o Paraguai (1864-1865). Com a última troca, a placa à Paissandu ganhou um rebatismo, agora instalada no bairro Partenon, também na capital gaúcha.