Com a defasagem da tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), usada para os serviços hospitalares prestados pelos estabelecimentos conveniados à rede pública de saúde, as despesas das famílias superam os gastos do governo para a área, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os gastos com o consumo final de bens e serviços de saúde no Brasil atingiram R$ 711,4 bilhões em 2019, início do mandato de Jair Bolsonaro (PL). Desse total, R$ 283,6 bilhões (3,8 do PIB) foram despesas do governo e R$ 427,8 bilhões (5,8% do PIB), de famílias e instituições sem fins lucrativos a serviço das famílias.
Segundo o IBGE, a despesa per capita com o consumo de bens e serviços de saúde, na ocasião, foi de R$ 2.035,60 para famílias e de R$ 1.349,60 para o governo. O principal gasto das famílias foi com serviços de saúde pública, que incluem despesas com médicos e planos de saúde — correspondente a 67,5% do total das despesas de consumo final de saúde.
O serviço público conta com defasagem na tabela de procedimentos do SUS e especialistas criticam o modelo de financiamento de recursos destinados para a área.
De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), mais de 1.500 procedimentos hospitalares estão defasados — e a lista poderia ser ainda maior, se considerados os atendimentos ambulatoriais, não apontados no levantamento.
A perda acumulada nos honorários médicos em determinados procedimentos chegou a quase 1.300%, aponta a estimativa do órgão, feita pela última vez em 2015.
Segundo o levantamento, o médico recebia R$ 10 por cada consulta ambulatorial realizada no SUS.
Os honorários médicos para o tratamento de doenças do fígado, como hepatite ou cirrose, chegam a apenas R$ 59,70, divididos pelo tempo médio de oito dias de internação do paciente. Ao fim do tratamento, corresponde a uma diária de R$ 7,46. De 2008 a 2014, a média diária de pagamento teve reajuste de apenas R$ 0,35. No final da comparação, pelos índices de inflação acumulados no período, hoje estaria, no mínimo, em R$ 10,50.
A tabela de procedimento do SUS lista, por exemplo, os valores de remuneração de quase 5 mil procedimentos médicos, que vão desde atendimento em ambulatório até cirurgias mais complexas, como transplante de coração.
Além da defasagem de décadas na tabela do SUS, especialistas criticam ainda o sistema de financiamento de recursos, dividido atualmente entre os três entes federativos — União, estados e municípios —, e citam perdas milionárias ocasionadas a partir da Emenda à Constituição 95/2016, editada durante o governo de Michel Temer (MDB).
O texto instituiu no país um novo regime fiscal e impôs um teto para os gastos até 2036. Durante o período, as despesas públicas poderão variar apenas conforme a inflação acumulada no período de um ano.
Se os efeitos das políticas de austeridade fiscal na área da saúde proporcionaram um financiamento aquém do adequado para suportar a demanda registrada no SUS, com a emenda do teto de gastos, especialistas apontam subfinanciamento.
Uma tabela que será apresentada em julho pela Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS) aponta que a emenda do teto de gastos fez com que o sistema público perdesse quase R$ 37 bilhões de recursos em saúde desde que foi promulgada. Participam do estudo Francisco Funcia, Bruno Moretti, Rodrigo Benevides, Mariana Mello, Erika Aragão e Carlos Ocke-Reis.
Se em 2019 o governo tivesse aplicado o mesmo montante que aplicou em 2017 — 15% da receita corrente líquida —, o Ministério da Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142 bilhões, e não R$ 122 bilhões de fato aplicados. Ou seja, houve encolhimento de R$ 20 bilhões apenas naquela ocasião, segundo o estudo.
Em entrevista ao R7, o conselheiro Getúlio Vargas de Moura afirma que, com a emenda do teto de gastos, congelando os recursos por 20 anos, o prejuízo ao SUS pode ultrapassar os R$ 400 bilhões.
“O fato é que, historicamente, nunca houve o financiamento adequado da Saúde. A tabela nunca foi ajustada e, sim, sempre subestimada. É o que a gente sempre diz que o SUS faz muito, com muito pouco”, afirma Moura. “E isso nos preocupa porque transforma em política de estado o que deveria ser de governo”, completa.
As dificuldades para atingir o volume de recursos necessários que atendam as demandas da população seguem sem vista de solução, mas os especialistas do CNS alertam para possíveis alternativas.
Para o consultor da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde e vice-presidente na Associação Brasileira de Economia da Saúde, Francisco Funcia, o principal problema em si não é a defasagem da tabela e, sim, o financiamento de recursos da saúde.
“A discussão da tabela do SUS fica secundarizada diante do modelo de financiamento de recursos que o SUS adota. A nossa sugestão é levar em consideração as necessidades da saúde da população e componentes para que se possa ter valor per capita definido, de modo que atenda ao sistema”, defende.
Segundo Funcia, o país necessita de um valor que possibilite a ideia de per capita. “O Reino Unido aplica cerca de 7,8% do PIB (Produto Interno Bruto) em saúde. Nós, cerca de 4%. E o custo per capita por dia beira os R$ 4”, relata.
Nesse modo compartilhado, o conselheiro do CNS aponta que a União vem reduzindo ao longo dos últimos anos sua participação no financiamento da saúde. “Atualmente representa menos da metade de tudo que se gasta, cerca de 42%, enquanto os municípios, 32%, e os estados, 26%”, diz.
Em nota, o ministério informou que os valores da tabela do SUS são atualizados constantemente e ressalta que não é a única forma de financiamento dos serviços. “O Ministério da Saúde repassa mensalmente, aos fundos estaduais e municipais de saúde, recursos financeiros destinados ao custeio de serviços hospitalares de média e alta complexidade”, diz, acrescentando que, em 2021, foram repassados R$ 45 bilhões e, em 2022, já foram R$ 16 bilhões.
A reportagem questionou o ministério sobre as defasagens e valores mencionados pelo CFM, mas não obteve retorno.