A primeira parte do julgamento dos quatro réus acusados pela tragédia da Boate Kiss, ocorrida em Santa Maria, há mais de oito anos, começou nesta quarta-feira, no plenário do 2º andar do Foro Central (prédio I), em Porto Alegre. No momento do início, pela manhã, chovia e fazia 19º C.
Os sócios da casa noturna Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão respondem por homicídio simples com dolo eventual (242 vezes consumado, pelo número de mortos; e 636 vezes tentado, número de feridos). Dolo eventual é quando a pessoa, mesmo sem intenção de matar, assume o risco. O juiz Orlando Faccini Neto preside o júri.
Às 9h, na chegada de Luciano e dos advogados dele, houve tumulto. “Assassino”, gritou um homem na entrada do Foro. “Não sou assassino”, respondeu o réu, que, em seguida passou mal e precisou de atendimento médico. O produtor musical chegou ao júri depois dos demais acusados, aparentando abatimento. O acusado, que vestia camiseta preta, calça e tênis, foi orientado pelos advogados a não falar com a imprensa.
Pouco antes, Suely Urquiza, mãe de Natasha Oliveira Urquiza, que morreu aos 20 anos na tragédia, chegou ao Foro vestindo uma camiseta com o rosto e o nome da filha, por debaixo de um casaco claro. “Espero justiça e que os responsáveis sejam punidos”, disse, emocionada. A mãe viajou de Uruguaiana para acompanhar o julgamento. “Quero que eles paguem pelo que fizeram. Esses jovens foram lá para se divertir e, por causa da ganância deles, que não quiseram abrir as portas da boate e queriam ver as comandas, morreram”, acrescentou a mãe, que afirmou esperar “consciência” dos jurados até o fim do julgamento. Muitos jurados chegaram carregando maletas e deixaram transparecer apreensão no olhar.
O plenário, com 350 metros quadrados, está dividido em palco (espaço usado pelo juiz, assessoria, oficiais de justiça, jurados, acusação, assistente, réus e defesas) e plateia, destinada a familiares, representantes das defesas, imprensa e autoridades.
O primeiro turno começou com atraso para o sorteio dos sete jurados – seis homens e uma mulher – e o impasse entre as partes acerca do tempo dos debates, que se manteve em 9 horas. O juiz também chegou a pedir para um dos advogados de defesa colocar a máscara de proteção facial. O advogado Jean de Menezes Severo, que defende Luciano, passou parte dos trabalhos tomando chimarrão no júri.
O presidente do Conselho de Comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS), desembargador Antônio Vinicius Amaro da Silveira, salientou que “a expectativa é que com o sorteio dos jurados as coisas transcorrerão mais tranquilas, porque o primeiro momento é tenso.”
Após os jurados terem sido escolhidos, fizeram o juramento e houve um intervalo de sete minutos determinado pelo juiz. “Ser jurado é uma experiência que pode ser difícil, mas é profundamente enriquecedora. Aconteça o que for, quando esse júri tiver terminado, vocês terão prestado um serviço cívico da mais alta envergadura”, comentou o juiz Orlando Faccini Neto.
Durante essa pausa, o réu Luciano conversou com o Correio do Povo. “Hoje, quando eu cheguei aqui, vi tudo aquilo de novo. Este júri será meu último grito para tentar mostrar a minha verdade e contar a história da minha vida, peço para todos que me escutem, sempre respeitando a dor dos pais e dos sobreviventes. Ninguém sabe a dor deles”, revelou.
No retorno, o advogado Jean Severo foi incisivo sobre os impasses em relação ao tempo dos debates: “É impossível fazer um júri em 37 minutos. Eu não faço miojo em 37 minutos”, vociferou. Curiosamente, na mesa do réu Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda musical, havia um pote cheio de balas.
A maioria dos familiares começou a chegar em torno das 13h ao Foro. No lado externo, um banner com o rosto e o nome das 242 vítimas foi afixado no portão de entrada.
O casal Áurea e Paulo, com a camiseta do filho Luiz Eduardo, que morreu aos 24 anos no incêndio, pediam justiça. “Que seja feita justiça e os responsáveis acabem punidos. Não é vingança, mas a justiça precisa ser feita”, disse o pai. “Era um filho muito bom. Amigo dos amigos e a casa da gente estava sempre cheia dos amigos dele”, lembrou. “Quero mandar um recado para todos os pais: fiscalizem e cobrem. Não podemos deixar as coisas irem para debaixo do tapete neste país”, desabafou a mãe.
Quatro representantes do movimento “Juntos”, que apoia a Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), exibiam cartazes criticando o Poder Judiciário por ter levado apenas quatro réus ao júri. “Mais gente deveria estar respondendo nesse julgamento. Cezar Schirmer, que era o prefeito de Santa Maria na época, vai participar como testemunha. Deveria estar no banco dos réus pela responsabilidade da prefeitura da cidade”, criticou Júlio Câmara.