A explosão de casos de covid-19 em todo o Brasil nos últimos dias leva ao colapso redes hospitalares pública e privada em diversas cidades. Em meio ao agravamento da crise, entidades médicas desenvolveram um protocolo que auxilia profissionais de saúde a escolher quais pacientes devem ser tratados com prioridade.
O protocolo foi elaborado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e segue diretrizes técnicas em conformidade com a legislação e a bioética.
A médica Lara Kretzer, coordenadora da força-tarefa da Amib para alocação de recursos escassos, ressalta que, oficialmente, as diretrizes ainda não vêm sendo aplicadas, mas podem ser necessárias nos próximos dias.
“Escolhas terão que ser feitas. Nossa preocupação é que esse processo esteja sendo feito de uma maneira que não é clara, que a gente não possa prestar contas ao público como um todo. E mais do que isso, colocando todo o peso da responsabilidade nos profissionais de saúde que estão na linha frente. É um peso muito grande do ponto de vista emocional, mas também uma preocupação jurídica, você ter que tomar uma decisão a quem vai ser alocado um ventilador ou uma vaga de UTI. Para que isso seja feito de maneira apropriada, do ponto de vista ético, legal e técnico, é importante que esse tipo de decisão seja compartilhada.”
Veja os principais critérios para definir a prioridade de um paciente:
• A gravidade da expressão da doença aguda (o número de órgãos comprometidos pela Covid-19);
• A existência de doenças crônicas que podem representar um curto período de vida pela frente mesmo sem a infecção pelo coronavírus;
• A medida da capacidade funcional, ou da reserva biológica do paciente — quanto mais debilitado fisicamente, mais difícil vai ser a superação da Covid-19.
A representante da Amib esclarece que a idade não é um fator levado em conta. “Posso ter um senhor de 80 e poucos anos que não tem doença nenhuma, que está bem fisicamente; e do lado dele, um paciente com 40 anos, com câncer avançado e predominantemente acamado. Neste caso, o senhor de 80 anos passaria na frente. Embora essa questão de doença e reserva biológica tenha uma relação com a idade, não é uma relação que faça com que os jovens vão sempre passar na frente.”
Um dos critérios que podem definir que um paciente não vá para a UTI é a vontade própria, explica a médica. “Não faz sentido eu oferecer um leito de UTI a uma pessoa que já disse que não queria. Temos, por exemplo, algumas pessoas de idade que dizem: ‘Eu já vivi bastante, já criei meus filhos, estou com tudo organizado, cumpri minhas missões, não quero ir para UTI e ser intubado, prefiro ficar aqui só no oxigênio e se eu passar mal, ser sedado’. As pessoas dizem isso para a gente, e precisa ser respeitado.”
Outro item estabelecido no protocolo se refere à permanência em UTI de pacientes sem chance de superar a doença. No entanto, Lara frisa que isso não significa retirá-los da ventilação mecânica para liberar leitos.
“Alguns pacientes internados há algum tempo na UTI, pode ser que a gente reconheça que essa pessoa não tem mais chance de sobreviver. Neste caso, não devemos retardar recursos úteis, que não vão modificar o que vai acontecer, porque não faz sentido aquela pessoa estar na UTI quando a gente já reconheceu que infelizmente ela vai morrer. Não é pela questão de leito em si, é pela dignidade da pessoa. A gente não faz isso com as pessoas, mesmo sem pandemia. Nosso protocolo, de maneira alguma, recomenda a extubação de pacientes para liberar vaga de UTI.”
Qualquer decisão, completa a médica, seja ela de não priorização ou de modificação do tratamento adotado, deve ser comunicada aos familiares “de maneira transparente”.
“Idealmente, temos que comunicar a família de que seu familiar não foi priorizado naquele momento, mas que segue na fila aguardando por leito, e que essa definição é dada pela chance de se beneficiar [da UTI]. É muito doloroso, muito difícil, mas partimos do princípio de que a transparência é o elemento que vai trazer o mínimo de confiança e segurança para o processo.”
Questionada se o Brasil corre o risco de viver o que ocorreu na Itália, no começo do ano passado, em que as ambulâncias deixaram de levar pessoas aos hospitais por não haver possibilidade de atendimento, Lara ressalta que isso ainda não está acontecendo.
“Eu torço para que a gente não chegue nesse ponto. Até onde eu sei, está havendo atrasos porque os serviços de atenção, o Samu, não estão dando conta de tanta demanda, mas estão levando para as emergências. Espero honestamente que a gente não chegue àquele ponto. Na Itália, pelo menos a gente consegue conceber que aconteceu rapidamente, a pandemia estava no começo. Agora, já faz um ano. Isso é devastador.”