E o Severino Rudes Moreira conta que o cemitério do Rodeio Velho estava entupido de gente, ao ponto de não se saber se havia mais sobre a terra ou no sete palmos abaixo do chão pois o pessoal era tanto que se cruzavam por entre as paredes brancas e as cruzes plantadas no solo, tomando o maior cuidado para não pisar por cima daqueles, que por infortúnio não haviam tido sorte na vida e nem na morte e descansavam as ossamentas ali na terra úmida e fria, coberta de pasto e “mal-me-quer”.
Engraçado, alguns dizem mal-me-quer, outros dizem bem-me-quer, de maneira que, não sei qual dos dois é o nome real dessa florzinha tão bonita, acho até que é o estado de espírito e o momento que definem qual dos dois usar.
Era costume naquelas campanhas lá de Santaninha, o pessoal se reunir no dia de finados e entre choramingos de saudade, velas acesas, flores e terços, também, tratavam de negócios, atavam pencas e até algum namoro se ajeitava por lá.
Segundo o Severino, ele podia até afirmar que não foram poucas as “percantas” que arrumou no cemitério, embora, também, possa afirmar que nenhuma fosse tão bela quanto a que deu origem a esse causo.
A dona Telícia, que até hoje ele não sabe se esse era o nome ou algum apelido que tinha, era a pessoa mais procurada para puxar os terços, em razão da simpatia, e a voz suave e compassada que tinha a velha senhora.
Rezava-se na hora de um terço em memória da avó do Moreira, a Dona Severina de quem ele herdou o nome.Os Pai Nossos e as Ave Marias iam saindo encarregaditos” que nem rastro de pomba rola, uma atrás da outra, e umas vinte pessoas, quase numa só voz repetindo, ” Santa Maria Mãe de Deus… Rogai por Nós”.
O Severino, entre uma oração e outra, olhou o retrato de sua avó, já desmerecido pelo tempo, que descansava ao lado de um cocho improvisado como vaso, onde estava plantado um pé de onze horas. O moçoilo viu que as flores principiavam a se abrir, devia ser mesmo umas onze horas a julgar pelo sol que já começava a lhe queimar o “coco” da cabeça.
“Coringou pra sua direita e enxergou uma cabeleira ruana, quase escondida por trás de outra pessoa que na hora não lembrou quem era, se encantou pelo brilho daquele cabelo, de uma cor assim igual barba de milho branco, ainda, “verdolengo”, que caía por sobre os ombros da moça, como se tivesse um raiozinho de sol guardado em cada fio.
Estava ele tão encantado com aquelas madeixas que, quando se deu conta a chinoquinha, lhe mirava também. Olhava e sorria, de uma maneira que segundo ele, a boca era ainda mais bonita que os cabelos e os olhos, ainda mais bonitos que a boca e o resto…
Bueno, e diz que o resto era, ainda, mais bonito que as três coisas juntas.
Por certo, não era dali. Naquelas campanhas, não havia quem ele não conhecesse e aquela chinoquinha, não era do tipo que passasse despercebida, nem pelos mais descuidados e ele por certo não era um deles, principalmente se tratando de uma moça tão bonita.
O que lhe deixava “deverasmente” espantado era o fato daquela mimosura andar solita, pois se compromissada fosse, o índio seria por certo igual a um quero-quero, com os olhos cravados em cima e se descompromissada fosse, seria por certo como uma borrega arrodeada de “sorros” de tão linda que era.
O mancebo se encontrava em pé, com o “mata-piolho” da mão direita enfiado na fivela do cinto, e em cima da mão direita
descansava a esquerda, de maneira que o seu chapéu, meio sobre o peito, meio sobre a barriga, tinha cada braço dele apertando uma ponta das aba, ficando, portando, a copa entre os dois.
Ele bem se recorda que coçou o nariz, com a borla do barbicacho, e a moça que ainda lhe olhava fez o mesmo com o crucifixo do rosário branco, que trazia nas mãos, depois desceu o crucifixo até a boca, beijou e lhe sorriu, de maneira que ficou sem saber se o beijo era para a imagem de Cristo no rosário ou para ele.
Terminou por fazer o mesmo com a borda do barbicacho e ela riu de novo.
Nessa hora, a Dona Telícia rezava a última Salve Rainha, em seguida fez o sinal da cruz e o pessoal foi se dispersando aos poucos, até ficar só ela lhe olhando com o mesmo ar de doçura nos olhos e aquele sorriso que lhe trazia as “frussuras” pra boca.
O Severino se aproximou e tentou puxar uma prosa, mas não teve resposta, parecia um bicho-do-mato com medo de gente e foi com aquele silêncio de “túmulo”, que deu as costas e se foi, sem que ele a tocasse ou sequer lhe ouvisse a voz.
Foi a primeira e a última vez que a viu, poi logo se foi montada num tordilho, que por mais estranho que pareça, ele não tinha visto que estava com a rédea arrastando no chão, ali no portão do cemitério, com aquela mansidão própria dos animais que, quando o dono apeia, ficam no mesmo lugar até que venha a montar de novo.
E foi assim que a viu sumir no horizonte, no rumo da costa do Camaquã, como se fosse uma nuvem de fumaça que se apagava aos poucos.
Às vezes, ainda pensa nessa china, sem saber se seria alguma surda-muda ou quem sabe alguma fazendeira, se julgando merecer algo mais do que um pobre peão que nem ele.
Às “deveras” não sabe, e isso de quando em vez , lhe tira o sono.
Mas de tudo, o que acha mais estranho é que de todo o “gentirío” que por lá esteve, inclusive as quase trinta pessoas que acompanhavam o terço, ele foi a única ” viva alma” que enxergou a moça.
Também, não entende porque uma moça tão bonita usava roupas tão fora da moda, tão antigas, quanto as que ele via nos retratos dos seus antepassados.
Teria ele, se apaixonado por uma assombração?