O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu, nesta quarta-feira, a prescrição de uma ação indenizatória proposta contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015. O pedido de indenização se referia à tortura seguida de assassinato do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, em julho de 1971, nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo. A decisão derruba a sentença de primeira instância, que fixou R$ 100 mil de indenização. Apesar da derrota, a família de Merlino ainda pode recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Ustra comandou o DOI-Codi, um dos maiores centros de repressão do País durante a ditadura militar. Em 2008, o coronel também se tornou o primeiro militar reconhecido, pela Justiça, como torturador durante a ditadura.
A esposa e a irmã do jornalista propuseram a ação em 2010. Hoje, por unanimidade, os desembargadores justificaram a prescrição. Eles entenderam que os fatos ocorreram em 1971 e que a família ajuizou a ação 39 anos depois do ato atribuído ao coronel e 22 após a promulgação da Constituição Federal de 1988 – prazos superiores aos 20 anos previstos no Código Civil para a abertura de processo.
De acordo com o relator, desembargador Luiz Fernando Salles Rossi, a promulgação da Constituição é considerada marco temporal, uma vez que já havia sido restaurada a Democracia no Brasil. O magistrado afirmou, no voto, que o prazo de prescrição fulmina o direito patrimonial das autoras de obter o ressarcimento pecuniário pretendido.
Integrante do Partido Operário Comunista à época, Merlino sofreu cerca de 24 horas de tortura e morreu, na sede do Doi-Codi, quatro dias depois de ter sido preso, em Santos, em julho de 71. Para a família de Merlino, partiu de Brilhante Ustra a ordem para as sessões de tortura que o levaram à morte.
Na decisão de primeira instância, a Justiça paulistana condenou Ustra a indenizar família em R$ 100 mil por ter participado e comandado as sessões de tortura que mataram o jornalista.
Hoje, a viúva de Merlino, Ângela Mendes Almeida lamentou a decisão do TJ de São Paulo. “Pode torturar, este é o recado que eles passam. E quem vai ser torturado são os pretos e os pobres na periferia”.
Crime imprescritível
Para o procurador regional da República Marlon Weichert, “a decisão do TJ [ao extinguir a ação de Merlino] é equivocada, [porque] ela está em desconformidade com todos os fundamentos da Corte Interamericana [de Direitos Humanos] e com a jurisprudência do STJ [Superior Tribunal de Justiça]”.
Apesar de a ação de Merlino ser de reparação e não uma ação criminal, Weichert considera que o entendimento da corte deve ser aplicado também nesse caso. De acordo com ele, o STJ entende que não há prescrição para indenizações pelas violações de direitos humanos registradas durante o regime ditatorial. Ele citou que a família do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975, também durante a ditadura civil-militar, entrou com ação cível na década de 90 contra a União e ganhou a reparação pela Justiça.
No início de julho deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou que o assassinato de Herzog cumpriu os requisitos de crime contra a humanidade, o que extingue as possibilidades de prescrição e de anistia dos torturadores e assassinos, possibilitando a reabertura das investigações sobre a morte.
Representantes do Ministério Público Federal disseram na ocasião que a forma como se organizou a repressão política no Brasil consistia em um ataque sistemático e generalizado contra a população, o que caracteriza crime contra a humanidade.
Para a diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso, a decisão da corte vale para outros crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil porque as características do caso Herzog se repetem nos demais crimes ocorridos durante o período de repressão.
Ela disse, na época da decisão da corte interamericana, que todas as violações praticadas por militares e civis a mando da ditadura militar, de 1964 a 1985, ocorreram no contexto de crime contra a humanidade, tornando-as imprescritíveis.