“Nossa história tem que ser conhecida como realmente aconteceu”, diz filha de diplomata morto pela Ditadura

Nova certidão de óbito, refutando tese de suicídio, foi concedida à família na última sexta.

Usina Hidrelétrica de Itaipu. Foto: R7

Lygia Jobim tinha 28 anos em 1979 quando o pai, o diplomata José Jobim, apareceu ‘enforcado de joelhos’ após anunciar que denunciaria crimes de corrupção envolvendo o regime militar. Quase 40 anos depois, Lygia pode – finalmente – comprovar o que a família sempre soube: Jobim jamais cometera suicídio, mas fora uma entre milhares de vítimas da repressão da ditadura militar. A nova certidão de óbito foi oficializada na última sexta-feira (21) e marcou uma etapa importante da luta da família Jobim para recuperar sua história e, por conseguinte, a memória do país.

Lygia falou nesta manhã ao programa Direto ao Ponto, da Rádio Guaíba, e declarou que a luta da família não termina com a verdade sobre sua morte. “Com o documento em mãos, eu vou buscar a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Minha família sempre foi muito cristã, e a partir disso aprendemos que temos que compartilhar o que temos. Essa comprovação não é só nossa, é para respeitar a história de todo o país”, disse.

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José Jobim anunciou, em conversa informal durante a posse do presidente João Figueiredo, que pretendia revelar esquemas de corrupção envolvendo a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Curiosamente, a declaração que levou ao sequestro e consequente assassinato se deu durante a posse daquele que ficaria conhecido como o presidente militar responsável por “abrandar” o regime repressivo. A obra de Itaipu custou dez vezes mais do que o orçamento previsto inicialmente, gerando custo aos cofres públicos -à época- na casa dos 13 bilhões de dólares.

Jobim foi embaixador do Brasil no Equador, Colômbia, Argélia, Vaticano, Malta, Marrocos e no Paraguai, onde participou ativamente das negociações com o país vizinho para a instalação da usina. Os papeis com supostas provas dos esquemas de corrupção desapareceram misteriosamente após sua morte.

Emocionada, Lygia relembrou a luta da mãe, que faleceu sem ter a morte do marido explicada corretamente: “não sei se bem ou mal, mas ela não está aqui para ver o desfecho do caso. Sempre tivemos cuidado para que ela não visse as fotos do meu pai morto, não pudemos ver o caixão aberto. Ela era uma mulher forte e que sempre buscou esclarecer os fatos. Minha mãe foi o maior exemplo de dignidade que já conheci”, complementou.

À época, Lygia lembra que questionou o delegado Ruy Dourado (responsável por encerrar o caso sem qualquer investigação) acerca do exame de necropsia. “Nós estávamos em companhia de uma médica amiga da família quando recebemos o laudo. Ela disse imediatamente que as lesões não eram compatíveis com as de enforcamento, de suicídio, ao que o delegado concordou. Quando o questionei (sobre a incongruência), ele disse ‘filhinha, você não está entendendo: seu pai colocou a corda no pescoço e esperou cair morto porque queria se matar’. Ali começou nossa luta”. Quando a tese de suicídio não se sustentou mais, seis anos depois, o caso foi arquivado como “homicídio insolúvel”.

A esperança da família Jobim retornou com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, fundada em 2011 para investigar crimes cometidos entre 1946 e 1988. Em 2014, o relatório da Comissão entendeu que Jobim sofreu “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”. A partir disso, a filha solicitou a retificação no registro civil de óbito, o que foi efetuado na semana passada.

“A nossa história tem que ser conhecida como ela realmente aconteceu. A minha luta foi também -e talvez mais do que pela família- para mostrar ao país que não se aceitam essas coisas impunemente”, afirmou Lygia. Disse ainda que as maiores dificuldades foram durante o período da Ditadura, sendo que dois anos se passaram até que a família conseguisse a abertura de um inquérito, quando já não havia mais qualquer prova. “Várias provas tinha sumido, várias pessoas tinham sumido, outras tinham morrido. Os documentos que comprovariam os esquemas de corrupção que ele queria denunciar também desapareceram”, complementou.

Questionada sobre a negativa de parte da sociedade acerca dos crimes cometidos no regime militar, disse que “isso é uma coisa que aterroriza. Isso é fruto de uma deseducação do povo: ao contrário de outros países, como Espanha, Chile e Argentina, nós não passamos nosso passado a limpo. Nós temos uma Lei de Anistia que é uma coisa pavorosa, tem que ser reinterpretada. Esse assunto não se estuda nas escolas, se passa batido por isso. O golpe segue sendo chamado de revolução. Temos que encarar esse passado de frente, senão teremos jovens que seguirão defendendo a ditadura e a tortura. Sem passar isso a limpo, nós não vamos em frente”, ponderou.