Como a vida de Porto Alegre mudou três meses após o início da maior enchente de sua história

Marcas da cheia permanecem visíveis em muitos pontos da Capital, enquanto moradores lutam para recomeçar em casas ou em abrigos

Foto: Camila Cunha/Correio do Povo

Há exato um trimestre, a vida dos porto-alegrenses mudou, talvez para sempre. Os arbustos ainda marrons e as marcas d’água presentes nas paredes externas de muitos edifícios denunciam aquela que foi a maior enchente da história da Capital, e espera-se que seja a última. A medição na régua oficial, no Cais Mauá, no Centro Histórico, alcançou 5,35 metros, deixando outra marca, indelével, no coração dos moradores. Mas ainda há aqueles que têm, na retina, a memória daquele 3 de maio de 2024, quando a água começou a invadir a cidade, tomando o espaço de ruas, avenidas, parques, casas e edifícios.

Do 4º Distrito ao Sarandi, das Ilhas ao Centro, do Menino Deus ao Lami, o território de Porto Alegre ficou cerca de 30% embaixo d’água, embora 100% afetado de alguma maneira. O limpador de vidros Roger Silva de Souza contou que mora na Ilha das Flores desde o nascimento, há 30 anos. Nos últimos meses, ele e a esposa, a auxiliar de cozinha Izabela Benitez, têm vivido na residência de um amigo do casal, na mesma lateral da BR 290. Três cães os acompanham. Os pais dele se mudaram para barracas, ainda mais perto da via, a partir de lonas que receberam.

À noite, o barulho alto dos caminhões na estrada assusta e tira o sono de todos. “A maioria das pessoas ainda não voltou, nem puderam limpar as casas. Eu mesmo, quando saí, fui para um abrigo no Partenon. Foi um momento bastante tenso. Voltamos para cá poucos dias depois, e ficamos na casa alugada de outro amigo, aqui ao lado. Meu tio estava conosco”, contou ele, enquanto aponta para onde o parente morava, uma residência inteiramente tombada na água no fundo da rua, na direção do banhado.

Roger diz que está conseguindo trabalhar somente uma vez por semana, porém recebeu os R$ 5,1 mil do Auxílio Reconstrução, com o qual comprou uma geladeira e mais alguns itens. O fogão foi doado pela equipe do abrigo. O restante permanece no pátio, sujo e estragado pela água barrenta. Em frente a casa e em toda a extensão da via, recentemente caminhoneiros depositaram toneladas de terra e pedras gigantes, para que os moradores possam aterrar seus terrenos, evitando, assim, que a água invada o local novamente. Além da dificuldade no manejo do material, ainda há muitas casas reviradas ou destruídas por completo.

“Temos que ser mais fortes, preparados e resilientes”, diz coordenador do Escritório de Reconstrução
Conforme a Prefeitura, mais de 160 mil pessoas, um número superior a 39 mil edificações e quase 46 mil empresas foram diretamente afetadas. Um dos sócios da cervejaria Alcapone, localizada no 4ºDistrito, Andrews Calcagnotto, disse que não pretende remover a marca da água do pavilhão do seu negócio. Praticamente tudo o que havia na sua produção e maquinário foi destruído pela cheia, porém o empreendimento está em processo de recuperação. “O pessoal vai vir para cá e perceber isto. Acho que até que vou deixar, justamente para as pessoas relembrarem como foram as enchentes”, afirmou ele.

Mais de mil quilômetros de vias públicas, 198 praças, parques e largos, 28 estações do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), 160 escolas e 31 unidades de saúde, entre elas dois hospitais, sofreram danos com a tormenta. 48,4% das mais de 25 mil famílias atingidas na Capital estão na chamada Faixa 1 do Cadastro Único, com renda por pessoa de até R$ 109. “A principal lição que tiramos disto tudo que vivemos, a maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul e do Brasil, é que temos de ser mais fortes, preparados e resilientes”, disse o coordenador do Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática de Porto Alegre, Germano Bremm, também secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade.

A Administração chegou a receber duras críticas em razão de falhas no sistema de proteção contra cheias, que, em tese, deveria evitar tragédias assim. O custo estimado da reconstrução da cidade é estimado em R$ 12,3 bilhões, acima do Orçamento municipal previsto inicialmente para este ano, de R$ 11,5 bilhões. Somente nas contas públicas, o impacto gira em torno de R$ 1 bilhão. “Na medida do possível, devemos nos antecipar a esta realidade do clima que se impõe. Os efeitos do clima estão presentes em todos os locais, não apenas enchentes, mas também ondas de calor e outros riscos”, acrescenta Bremm.

Bairro Sarandi cria associação para auxiliar atingidos pela cheia
O Sarandi foi o bairro mais atingido, com 26 mil pessoas desalojadas e 8,1 mil edificações afetadas. Nesta região da zona Norte, a força dos moradores ajudou a trazer o alento diante da situação trágica. “Aprendemos, neste processo, que podemos nos organizar como um todo, junto aos nossos vizinhos, com soluções para nosso bairro. Existe aqui um senso geral de comunidade que é muito importante para que as coisas pudessem acontecer”, disse o presidente da Associação dos Atingidos pela Enchente do Bairro Sarandi, Maurício Lorenzatto.

A entidade, fundada no contexto das inundações, organiza ao menos uma vez por semana um mutirão de entrega de cestas básicas, água, roupas e demais itens de necessidade básica, em um galpão na rua Faria Lobato. No começo, a entidade distribuía 135 fichas. Agora, são 50, em razão da redução dos donativos. Nesta semana, a chegada de um caminhão com mais doações de outras partes do país foi motivo de celebração para o grupo de seis voluntários que organiza as entregas.

“Até então, não tínhamos mais nada. Temos que lutar e ter voz. A gente está aqui porque quer ajudar todo mundo. Eu tenho fibromialgia, podia estar em casa, dormindo, mas estou aqui”, afirmou a desempregada Ana Karina Michel, uma das que perderam tudo na enchente e, mesmo assim, se voluntariaram. A associação também promove atendimento jurídico gratuito, todas as terças, quartas e sextas-feiras, na avenida dos Gaúchos, número 1303, aos moradores que desejarem ingressar com ações de reparação dos danos materiais.

No próximo dia 7, segundo Lorenzatto, eles participam de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. “Estamos convocando autoridades para prestar explicações aos moradores do bairro sobre uma série de questões, principalmente moradia, quem perdeu suas casas, e como ficarão os diques em si, seguir cumprindo o papel de fiscalizadores do Poder Público”, comenta ele, para quem grande parte dos moradores se sente insegura na volta para casa. “Dá para perceber isto andando à noite na rua, muitas casas estão escuras”, diz o presidente.

Montanhas de entulhos na Capital no aguardo de solução

Com a baixa da água, a Prefeitura instituiu os bota-esperas; na realidade, gigantescos depósitos temporários que passaram a receber resíduos da enchente. Dos nove originais, de acordo com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), seis seguem ativos. Três estão com recolhimento pela pasta de Parcerias (SMP): Farrapos 2 – próximo à Arena do Grêmio; Cairú, no bairro Floresta; e Porto Seco, no Rubem Berta. Já o Farrapos 1, no Anchieta; e Serraria, no Espírito Santo, recebem resíduos gerados pelos repasses de limpeza. Outros três já foram fechados: Farrapos 3, no Humaitá; Aeromóvel, em terreno do Dmae; e Chocolatão, em terreno da Polícia Federal, os dois últimos no Centro Histórico.

O Severo Dullius, no Sarandi, recebe tanto repasses dos times de limpeza, quanto inertes de outros bota-espera, após o Ministério Público do RS (MPRS) pedir a suspensão dos envios ao aterro de inertes de Gravataí, na região metropolitana. A solicitação do órgão foi atendida no último dia 19 de julho. Procurado para comentar, o DMLU afirmou que “entende a relevância das exigências feitas pelo MPRS e tomou medidas emergenciais para que não ocorram prejuízos à limpeza da cidade”. Disse ainda aguardar que a empresa contratada realize as adequações necessárias.

Mas onde estão em funcionamento, estas verdadeiras montanhas de lixo de todos os tipos perturbam os moradores e trabalhadores locais pela presença do fedor e animais indesejados. “Tem sempre um cheiro muito ruim, principalmente quando vou almoçar. Já vi moscas, ratos, baratas, e não tem muito o que possa ser feito. Quando muda a direção do vento, é ainda pior, o cheiro vai lá para dentro”, afirmou o conferente de carga e descarga Cesar Rodrigues Oliveira, que trabalha em uma empresa ao lado do bota-espera do Porto Seco.

Centros de acolhimento trazem nova esperança aos atingidos

Desde o começo da enchente, os abrigos tornaram-se pontos de passagem e acolhimento àqueles que precisaram sair de suas casas. Em Porto Alegre, além daqueles criados pela própria comunidade, o governo do estado, em parceria com a Fecomércio e a Organização Internacional para as Migrações (OIM), das Nações Unidas, desenvolveu os Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs), previstos para durarem seis meses. Dois estão no município de Canoas, o Esperança e o Recomeço, enquanto Porto Alegre tem um, o Vida, no bairro Rubem Berta, junto à estrutura já existente do Centro Humanístico Vida.

É ali que está abrigada a jovem venezuelana Millanes de Los Angeles Alvarez Medina. Mãe de dois filhos, um com quatro anos e outro com apenas nove meses, a moradora da Vila Asa Branca, no Sarandi, contou que veio ao Brasil ainda em 2019, em busca de uma vida melhor, como muitos de seus conterrâneos. No entanto, a tragédia da enchente de 2024, que destruiu sua casa, adicionou mais um desafio à sua trajetória. “Aqui estou muito bem acolhida, apesar do frio. Tenho muita saudade de casa. Começar aqui, depois perder tudo não é fácil”, disse ela na lavanderia coletiva do espaço, enquanto acalentava o bebê sentado em um carrinho. O que recebeu veio de doações.

O CHA Vida é amplo, com 122 dormitórios de cinco ou dez lugares cada um, distribuídos em quatro alas. Aberto em junho em formato de tendas, pode acolher até 850 pessoas, mas nem todos os espaços estão hoje ocupados. Ali existe refeitório, depósito, espaço de recreação, atendimento médico e odontológico, policiamento 24 horas e inclusive bancadas para carregamento de celulares. Nesta semana, um campeonato de futebol trouxe nova injeção de ânimo aos moradores, que buscam, mais do que nunca, um recomeço digno. “Nosso objetivo central é poder acolher e cuidar dessas pessoas, para que elas possam dar o próximo passo rumo à reconstrução de suas vidas”, ressaltou o coordenador de projetos da OIM, Eugênio Guimarães.