O Ministério da Saúde atualizou os procedimentos de justificação e autorização da interrupção da gravidez (aborto), nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Portaria nº 2.282/2020, publicada hoje, no Diário Oficial da União, altera a norma anterior (Portaria nº 1.508/2005).
De acordo com o documento, os procedimentos devem ser seguidos para garantir a licitude do aborto e a segurança jurídica aos profissionais de saúde. No Brasil, o aborto é permitido por lei nos casos em que a gestação implica risco de vida para a mulher, quando a gestação é decorrente de estupro e no caso de anencefalia.
A nova norma prevê que, antes da aprovar a interrupção da gravidez, a equipe médica informe a gestante acerca da possibilidade de visualizar o feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso assim deseje. Para isso ela deve proferir expressamente a concordância, de forma documentada.
A portaria anterior, de 2005, previa que esses procedimentos de justificação e autorização não eram necessários nos casos que envolvem riscos de morte da mulher. Essa previsão é retirada na portaria publicada hoje.
Procedimento
O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei envolve quatro fases que devem ser registradas no formato de termos confidenciais, arquivados anexos ao prontuário médico.
A primeira fase é o relato sobre as circunstâncias do crime de estupro, realizado pela própria gestante perante dois profissionais de saúde do serviço. O Termo de Relato Circunstanciado deve conter local, dia e hora aproximada do fato, tipo e forma de violência, descrição dos agressores, se possível, e identificação de testemunhas, se houver.
Na segunda fase, serão feitos exames físicos e ginecológicos pelo médico responsável, que emite parecer técnico. A gestante também deve receber atenção e avaliação especializada por parte da equipe de saúde multiprofissional, composta por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo. Três integrantes dessa equipe subscrevem, então, o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, que não pode ter desconformidade com a conclusão do parecer técnico.
A terceira fase é a assinatura do Termo de Responsabilidade, que contém a advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto, previsto no Código Penal, caso não tenha sido vítima do crime de estupro.
A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que deve conter a declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente da gestante de interromper a gravidez. Para isso, a mulher deve ser esclarecida, em linguagem acessível, sobre os desconfortos e riscos possíveis do aborto à saúde; os procedimentos que serão adotados para a realização da intervenção médica; a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis; e a garantia do sigilo quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de serem compartilhados em caso de requisição judicial.
Todos os documentos do Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez devem ser assinados pela gestante, ou, se for incapaz, também pelo representante legal. Eles serão elaborados em duas vias, sendo uma entregue à gestante.
A portaria determina que médicos, profissionais de saúde ou responsáveis por estabelecimento de saúde notifiquem à polícia os casos em que houver indícios ou confirmação de estupro, o que já é previsto em lei. Além disso, esses profissionais deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro, a serem entregues imediatamente à autoridade policial, como fragmentos de embrião ou feto, para a realização de exames genéticos que poderão levar à identificação do autor do crime.
Outro lado
Em nota, a organização não-governamental (ONG) Anis – Instituto de Bioética informou que a portaria cria barreiras que comprometem o acesso ao serviço de aborto legal e seguro “porque visa transformar médicos e enfermeiros em olhos e ouvidos do Estado dentro do sistema de saúde”. “Ao exigir notificação da autoridade policial pelo médico, mulheres podem não se sentir seguras para acessar os serviços legais de aborto, fazendo com que muitas recorram a práticas clandestinas de interrupção da gravidez. Práticas que podem ser fatais”, argumenta a nota.
O instituto sustenta que nunca foi necessária a presença de policiais para o processo e que agora “o cuidado e a privacidade dão lugar a perguntas de investigação policial”, tirando completamente o “direito ao sigilo médico”.
“Essa portaria revitimiza a pessoa abusada ao exigir que ela conte outra vez sobre o episódio de violência que viveu”, considera a ONG. A pressão do estado invade as salas de hospitais como forma de tortura, passa a obrigar meninas e mulheres a verem o ultrassom da gestação, sem qualquer justificativa para tal exigência”, completa a nota.
O movimento Católicas pelo Direito de Decidir também se manifestou repudiando a nova norma do Ministério da Saúde, o que, para ele “inviabiliza, na prática, o atendimento das mulheres e meninas vítimas de violência sexual nos serviços de saúde”. “A denúncia, o boletim de ocorrência policial, não pode ser imposição para o atendimento”, defende.