Era o começo de maio, e o reciclador André Ribeiro Oliveira, mais conhecido como André Laçador, havia saído da casa humilde onde morava, no bairro Humaitá, zona Norte de Porto Alegre, apenas com a esposa, Leonira, mais a roupa do corpo e uma bandeira do Rio Grande do Sul. Com a casa destruída pelas enchentes, eles foram ao abrigo do Centro Vida, onde sua história individual começou a mudar. Neste sábado, André será o condutor da Chama Crioula do Acampamento Farroupilha da Capital, junto ao cavalo Caramelo, outro símbolo de resistência em meio à tormenta, dando início oficial ao evento, que prossegue até o próximo dia 22.
Sem saber ler ou escrever, André fala manso e seus olhos marejam a cada frase. Estava, na última sexta-feira, atuando como caseiro no Piquete Tio João, porém sua expectativa estava na abertura do Acampamento, onde os olhos de todo o estado estarão voltados para ele. Algo impensável para alguém que, há alguns meses, disse no abrigo “não aguentar mais” de tanta exaustão, depois de ajudar vizinhos e amigos a sair da água, bem como depois, auxiliando outros voluntários a descarregar caminhões de ajuda.
Chama a atenção sua interlocutora nesta ocasião: a atual secretária de Cultura e Economia Criativa de Porto Alegre, Liliana Cardoso, que o conheceu no Centro Vida. “Passei por uma situação que nunca imaginei que passaria. Ao mesmo tempo, Deus me abençoou, porque ele me deu força de viver cada vez mais. Acho que minha parte eu fiz. Depois de não ver que não dava mais, fui para o abrigo. Havia chegado ao extremo do extremo”, recordou ele.
Quando estava abrigado, Liliana o encontrou vestindo uma boina preta, algo que despertou sua curiosidade. “Ela me perguntou o que eu precisava. Respondi que eu havia ajudado a salvar tantas vidas, e na hora que eu mais precisei, não tinha ninguém para me ajudar. Mas lá em cima, Deus dá muita força de vontade. Ela mandou irem buscar minhas coisas, minha roupa de salvamento, minha bandeira, e fiquei como voluntário”.
O apelido Laçador vem de uma paixão pelo laço que vem desde criança, algo que foi interrompido há alguns anos, depois de um acidente de moto. Natural de Viamão, André contou que costumava frequentar rodeios pela região, embora nunca tenha competido profissionalmente. Partiu para a reciclagem, atividade que hoje é seu ganha-pão. A cheia destruiu seu carrinho e todos os móveis e eletrodomésticos. Alguns dias depois da enchente, voltou e encontrou a casa ainda inundada, com muitos itens ainda boiando.
Leonira é sua segunda esposa, e ele diz ter cinco filhos, três homens e duas mulheres adotivas, todos casados e morando fora. Ele mal pôde esconder a satisfação quando, um dia, recebeu a ligação de Liliana o convidando para a tarefa no sábado. “Foi uma grande honra. (Ela disse) Quero que tu seja o homem que vai transportar a Chama para dentro do Parque Harmonia. O senhor e o Caramelo. Imagina, aquele cavalo é muito importante, foi resgatado em uma situação horrível. Ele é o símbolo do Rio Grande pela sua sobrevivência. Tirar uma foto com ele vai ser o maior orgulho para mim”.
Laçador recebeu indumentárias novas, doadas por estabelecimentos comerciais no Acampamento Farroupilha. Carrega consigo no parque sempre uma bandeira gaúcha, não aquela do período de salvamentos, que permanece resistindo na casa do Humaitá. Depois do evento, inclusive, é para lá que deverá retornar, assim como para o ofício na reciclagem, que diz fazer com paixão. “Ali é meu rancho, minha querência. Não tenho outro lugar para ir. Plantei muitas histórias ali, e agora estou colhendo”.