Porto Alegre mantém marcas da enchente quatro meses depois do início da tragédia

DMLU promete limpeza de todos os resíduos relacionados com as cheias, incluindo nos bota-espera, em, no máximo, 60 dias

Bota-Espera na Av Saverius Dullius, Sarandi Foto: Ricardo Giusti/CP

Quatro meses depois do início das enchentes de maio, o cenário atual de Porto Alegre é muito diferente da devastação vislumbrada durante as cheias, porém isto não significa que toda a sujeira trazida pela inundação tenha sido eliminada. Há, sim, ainda muito trabalho a ser feito, especialmente nos bota-espera abertos pela Prefeitura para receber temporariamente o entulho inerte. “No máximo, em 60 dias, teremos os resíduos eliminados e os bota-espera limpos”, promete, no entanto, o diretor-geral do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), Carlos Alberto Hundertmarker.

Conforme Hundertmarker, desde o dia 6 de maio, foram removidos aproximadamente 100 mil toneladas de entulhos relacionados às enchentes na Capital. Inicialmente nove terrenos, hoje apenas um segue em funcionamento, na rua Sérgio Jungblut Dieterich, junto à Vila Nazaré, bairro Sarandi, ainda de acordo com o DMLU. Outros dois, o Serraria, no bairro Espírito Santo, e o Porto Seco, no Rubem Berta, tiveram no final de agosto o edital republicado pela Secretaria Municipal de Parcerias (SMP), porque as propostas apresentadas dias antes haviam sido superiores ao preço de referência estabelecido.

Os resíduos irão para o município de Minas do Leão. Além do prejuízo de R$ 12,3 bilhões na economia do município, a Prefeitura de Porto Alegre afirma que um total de 160.210 pessoas, 45.970 empresas e 39.422 edificações foram afetadas pelas cheias. A cota histórica do Guaíba, de 5,35 metros, afetou ainda 28 estruturas do Dmae, 160 estabelecimentos de ensino e 31 de saúde, entre eles dois hospitais, 1.081 quilômetros de vias públicas, 186 praças, 12 parques e largos.

A população com deficiência afetada na Capital foi de 11.702 pessoas, e em situação de vulnerabilidade social atingida, somou 25.065 famílias, das quais 48,4% estavam em condição de pobreza extrema, ou seja, recebiam até R$ 109 por pessoa. 100% das pessoas com renda familiar abaixo de R$ 1,5 mil na cidade relataram ansiedade depois das enchentes, segundo os resultados preliminares de uma pesquisa feita pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), com apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Rede Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação na área da Saúde Mental (Renasam).

O Aeroporto Internacional Salgado Filho continua em obras, e é previsto para voltar a receber voos domésticos em 21 de outubro, assim como internacionais em 16 de dezembro. De acordo com a Fraport, a pista, atualmente cerca de 55% concluída, recebe um asfalto inédito no Brasil, resistente a temperaturas de -22 a 72 graus Celsius. Testes estão sendo feitos em equipamentos e subestações elétricas atingidas pela água.

Já o serviço da Trensurb segue sem alcançar Porto Alegre, chegando, no máximo, até a estação Canoas. A situação continua forçando milhares de usuários com destino à Capital a se aglomerarem todos os dias no terminal de ônibus da estação Mathias Velho, imediatamente anterior, formando filas quilométricas em busca de um embarque nos coletivos da empresa Transcal. A Trensurb afirma que deverá atualizar a situação do serviço nesta semana, porém, por ora, o prazo de retomada até a estação Farrapos segue sendo o próximo dia 20, e até o Natal na Mercado.

O Abrigo do Gasômetro conseguiu um novo galpão no bairro Lageado, no extremo-sul de Porto Alegre, para abrigar os cerca de 40 animais resgatados depois das cheias. Agora, a equipe busca um novo apoio para organizar insumos, mão de obra para construir paredes e limpar baias, além da limpeza geral. Na semana passada, a equipe de voluntários estava provisoriamente abrigado no Kennel Club, no bairro Campo Novo, porém o local demandava sua saída até a última sexta-feira.

As marcas horizontais da água seguem visíveis em paredes de diversos bairros, como na zona Norte e região das ilhas, o que motivou voluntários a lançarem mão de iniciativas para revitalizar estes locais. Uma delas é a Paredes com Propósito, realizada até o momento em três edições, a última no final de semana passado, na Vila Santa Terezinha, uma das áreas de maior vulnerabilidade social da área central de Porto Alegre. Será mais difícil, porém, apagar da memória dos moradores as lembranças da tragédia.

O presidente da Associação de Reciclagem Ecológica da Vila dos Papeleiros e líder comunitário há 25 anos, Antônio Viana Carboneiro, disse que, com a cheia, um caderno de atas de reuniões, parte importante do legado da comunidade, foi perdido para sempre. “Naquele livrinho, contávamos toda a história da vila. Tinha assinatura de prefeito, deputado, vereador. Foi algo que a gente escreveu”, contou ele. O próprio morador relatou que perdeu três televisores, geladeiras e tudo o mais que havia na pequena casa, mas ele mesmo deverá permanecer.

“A enchente pegou todo mundo desprevenido. Quem tinha casa baixa, perdeu também. Porém, aos pouquinhos, vamos nos recuperando”, acrescentou. Outra moradora, Eliane Dutra, contou que muitos vizinhos foram salvos porque se agarraram em bags contendo materiais recicláveis, normalmente utilizados como meio de trabalho da comunidade, e flutuaram na água até um buraco aberto por eles próprios no muro vazado de concreto que dá acesso à avenida Castelo Branco, onde a água não alcançou.

“Toda vez que a gente entra em casa e vê a marca da água nas paredes, tem uma lembrança muito ruim. Na época da enchente, foi o povo ajudando o povo. O pessoal foi resgatado com água pela cintura, pulando janelas, algumas delas feridas. Parecia que tinha caído uma bomba aqui dentro. Quando a água baixou, foi pior, porque as nossas coisas, sofá, geladeira, fogão, tivemos de tirar para a rua, e os caminhões de lixo não queriam entrar para recolher”, relatou ela.

Alguns moradores ainda não voltaram para suas casas, mas a maior preocupação dela é com três bocas de lobo na rua 1043 que continuam entupidas pelo excesso de lixo acumulado. “Não estamos conseguindo abrir protocolo para esta situação. Graças a Deus, por enquanto, não caiu uma chuva forte, mas nosso medo é que, em setembro, desça uma mais intensa. Se estes bueiros não forem desentupidos, vai entrar água de novo, e aí? A dragagem do Guaíba não foi feita até agora. Enquanto ela não for feita, o rio vai encher e transbordar”.

No bairro Sarandi, a área mais afetada da Capital, ainda havia no final de semana ao menos uma montanha de entulhos na calçada da rua José Huberto Bronca. O material foi retirado da casa do aposentado Alexandre Barbosa, que somente agora conseguiu entrar nela, na Vila Brasília, para remover itens como móveis e eletrodomésticos destruídos. “Isso tudo que aconteceu é uma lição para mim e outras pessoas que com a natureza não se brinca. Não adianta apontar culpados agora, porque se já não foi feito antes, o que adianta? Acredito que o poder público vem falhando há muito tempo, porém não é só ele”, disse. Apesar disto, ele contou já ter acionado o DMLU.

O eletricista Roger Padilha, morador há 12 anos da Vila Elizabeth, próximo ao dique do Sarandi, estava na semana passada lavando as casas da mãe, que mora na frente de um terreno, e dele, da esposa e da filha de sete anos do casal, moradores dos fundos. “Estamos tocando em frente para podermos retornar. Agora, estamos morando de aluguel”, relatou ele. No local, a água subiu acima do telhado, já trocado. As paredes de madeira das residências seguem soltas. No entanto, serão substituídas por tábuas já adquiridas pela família. “Foi uma coisa sem explicação”, resumiu ele, sobre a experiência durante as cheias.

Na semana passada, os diques em si começaram a receber obras emergenciais do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), ao custo de R$ 10 milhões, com recursos próprios. Outros R$ 510 milhões estão previstos pelo órgão para ações de emergência no âmbito do saneamento pós-enchente. O Dmae afirma que, no caso do dique da Fiergs, alguns pontos estão com dois metros a menos de altura em relação ao projeto inicial, elaborado na década de 1960.

Relatório do governo holandês sugeriu melhorias

Com as intervenções, o local será elevado para 5,50 metros em toda sua extensão. Nesta etapa, não serão removidos moradores. Na primeira fase da ação, em junho, 48 casas foram retiradas. O Departamento Municipal de Habitação (Demhab) identifica as famílias para encaminhamento de moradias junto ao governo federal. Estão em andamento os estudos sobre as comportas do sistema de proteção contra cheias no Cais Mauá, que serão substituídas, reforçadas e/ou concretadas de maneira permanente.

Ainda considerando o cais, o Correio do Povo antecipou, há uma semana, uma das recomendações do relatório do governo holandês, publicado oficialmente dias mais tarde pelo Dmae, para reduzir os impactos de eventuais novas cheias. Trata-se da construção de um segundo muro no Cais Mauá, com a mesma extensão de 1,5 quilômetro do local, 2,50 metros de largura e um metro de altura, analisando o contexto das cheias. Sacos de areia, dizem os técnicos holandeses, poderiam ser empilhados em caso de necessidade, aumentando a altura para até três metros.

A intervenção nos diques do Sarandi foi outra medida recomendada pelos europeus, bem como mais uma já anunciada pela Administração: a instalação de dez réguas com câmeras para medição dos níveis de cursos d’água, a exemplo dos arroios Dilúvio, do Salso, Moinho e das Pedras. No mesmo evento, foram anunciados dez totens eletrônicos de segurança com estações meteorológicas e emissões de alertas de emergência, integrados à Defesa Civil Municipal.

Vice-governador: “Estado avança, apesar da burocracia”

Na semana passada, o vice-governador e coordenador do projeto dos Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) no estado, Gabriel Souza, recebeu em Porto Alegre o número 2 da Organização das Nações Unidas (ONU), Christian Saunders, em visita à Capital para conferir o combate e prevenção a crimes sexuais nos abrigos. Para o vice-governador, o estado está avançando, apesar dos processos burocráticos.

“O tempo das pessoas, infelizmente, não é o mesmo tempo do governo no que tange à burocracia. Entendo que as pessoas têm este senso de urgência, e precisamos ser resistentes para vencê-la todos os dias. Apesar da situação de calamidade, temos entregas bastante efetivas, na comparação com a gestão pública brasileira”, disse Souza, citando, inclusive, ações feitas fora de Porto Alegre, em áreas do RS como o Vale do Taquari, especialmente na área de habitação.