Mendonça herda mais de mil ações deixadas por Marco Aurélio Mello no STF

Ministro chega à mais alta corte do país com o desafio de separar a fé do exercício do direito durante os julgamentos

Ministro André Mendonça é relator da ação que questiona o fundo eleitoral. Foto: Anderson Riedel/PR

O ministro André Mendonça, que toma posse na próxima quinta-feira (16) no STF (Supremo Tribunal Federal), entra na Corte com uma carga com mais de mil processos para serem julgados — dentre eles, 23 ações que correm sob sigilo. O acervo faz parte do material jurídico deixado pelo ministro Marco Aurélio, que se aposentou em julho deste ano. Depois de quase quatro meses aguardando aprovação pelo Senado, o novo ministro ingressa no cargo sob o desafio de separar a Constituição da Bíblia durante sua atividade como magistrado.

Mendonça é pastor da Igreja Batista Presbiteriana de Brasília, instituição que ele próprio define como “tradicional, histórica, de linha reformada”. A relação dele com a religião foi a base da escolha do presidente Jair Bolsonaro para indicá-lo ao STF. No entanto, também foi motivo de críticas de senadores durante a sabatina e gera uma certa apreensão entre seus pares no Supremo. Apesar do ponto de tensão, ele é bem visto pelos magistrados, e alguns, nos bastidores, trabalharam por sua aprovação no Legislativo.

Um dos integrantes do Supremo, que conversou com o R7 na condição de anonimato, disse esperar que Mendonça seja técnico e imparcial em sua atuação. “A convivência será boa. Praticamente todos os ministros têm alguma doutrina religiosa. Mas sabemos separar bem a fé do trabalho e acredito que não cabe qualquer tipo de envolvimento. O candidato em campanha para convencer os senadores é uma coisa, se faz muitas promessas; agora, ao assumir o cargo, é outra realidade”, disse.

O magistrado serviu por 20 anos na AGU (Advocacia-Geral da União), onde ele é servidor de carreira. Natural de Santos, em São Paulo, ele já está habituado aos corredores do poder na capital federal. Foi ministro da Justiça no governo do presidente Bolsonaro, período em que acumulou polêmicas ao abrir investigações contra críticos do governo, e por fim, ocupou o cargo de advogado-geral da União até a indicação ao Supremo.

Dos processos que ele vai encontrar no gabinete ao chegar na Corte, estão 180 temas criminais e 490 sem decisão final. No entanto, o acervo deixado por Marco Aurélio é um dos menores. O ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato, por exemplo, tem 2.707 processos em análise. Ele é seguido pelo ministro Nunes Marques, com 2.509, e Dias Toffoli, com 1.671.

Estado laico

Entre os ministros que declaram sua religião no Supremo, Mendonça será o único evangélico. Apenas as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia não têm suas profecias religiosas publicamente conhecidas. Esse tema não costuma ser um problema no Supremo, e não existem casos recentes e notáveis de pedidos de suspeição de ministros, ou seja, impugnação da atuação de um magistrado no processo por motivos religiosos.

O advogado Philipe Benoni, especialista em Direito Público, destaca que a previsão da laicidade do Estado, presente na Constituição, ocorre justamente para garantir o exercício da profecia religiosa. “Deve-se ter em mente que é apenas quando o Estado passa a ser laico que temos uma verdadeira proteção das liberdades de crença, principalmente porque agora todos os cultos podem ser públicos, sendo permitido o proselitismo religioso. Dificilmente a religião, isoladamente considerada, é questão a ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal, mas pode circundar outros temas relevantes a serem julgados”, diz ele.

Ele destaca que sazonalmente o Supremo se depara com assuntos onde o direito e a fé são confrontados, mas que geralmente os temas são resolvidos de maneira a respeitar todos os direitos e garantias fundamentais. O advogado cita o caso da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n° 54, que o STF considerou inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez em caso de gestação de feto anencefálico seria crime previsto no Código Penal, “pois não se coadunaria com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde”.

Outro exemplo é a ADI 4439, diz Benoni, quando o STF decidiu que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter natureza confessional, isto é, seguir ensinamentos de uma religião específica. “A partir da conjugação do binômio laicidade do Estado e liberdade, o Estado dever assegurar o cumprimento do art. 210, §1º da Constituição”, completa.

O advogado constitucionalista Wanderson Silva, de Brasília, afirma que a legislação prevê em alguns casos a suspeição do juiz por motivos religiosos. “A Constituição coloca que a República é laica, ou seja, não existe uma religião específica para reger as relações em sentido geral que ocorram no Brasil. Deste modo, quando uma autoridade usa em suas religiões fundamentos baseados em sua crença, se viola a legislação. As decisões judiciais e administrativas devem ser motivadas em princípios baseados na Constituição. A suspeição de uma autoridade por motivo de crença está prevista no Código de Processo Penal”, diz.