A tapera da véia Zeca

"Este jornal vai ser feito para toda a massa, não para determinados indivíduos de uma facção". Foto: Arquivo CP

O Severino, na ocasião deste causo era gurizito taludo, de doze prá treze anos, e como sempre era mui entonado, e se” gabava” que de assombro não corria, embora na verdade se borrasse de medo de um dia se topar com alguma alma de outro mundo.
Por balaqueiro que era , é que se deu o causo que lhes conto, pois tanto se vangloriou da sua suposta coragem, que teve que agüentar a pataquada e passar uma noite solito na tapera da véia Zeca. Segundo diziam, uma tapera assombrada, lá na beira do Cerro da Ronda. Uma toca de morcegos, ratos e cruzeiras.
Pois saibam que, realmente, existiu a véia Zeca, uma viúva que deveria andar por volta dos 90 e pico de idade. A bruxa da Costa do Cerro, a véia benzedeira.
Era magra como uma taquara, alta como um jerivá, meia corcunda e nariz de cocóta, e como naquele tempo, viúvas usavam luto fechado, andava de preto, desde o chinelinho de pano até o lenço da cabeça, e por isso, para a gurizada,, era vista mesmo, como uma bruxa, pois, além disso tudo, vivia solita, com um gato preto, até o dia em que o Patrão Velho a chamou para a querência grande, tendo ficado a beira do cerro, apenas a tapera, com os cacarecos da pobre velha.
Era na verdade, uma boa pessoa, serviçal e habilidosa no “aparo” do piazedo, mas a aparência e todos aqueles rituais de benzedura que usava, provocava um certo medo na gurizada, pois não faltava quem os assustasse afirmando que a velha era mesmo uma bruxa, e que em noites de lua cheia voava de à cavalo em uma vassoura de chirca e, que roubava as crianças, de uma mãe para entregar a outra, quando fazia parto.
Ninguém se arriscava a anoitecer perto da tapera, pois diziam que se apagava o fogo, a cavalhada se soltava da soga, e aconteciam muitas outras coisas que ninguém até hoje encontrou explicação, e tampouco provou ser verdade.
Pois como ia lhes contando, foi na tapera da véia Zéca, que aconteceu este causo e tudo porque o piá Severino de tanto ser mostrado, o Emerenciano Saraiva e o Deodato Rosa, que na época eram guris quase da mesma idade, fizeram ele provar que não tinha medo de assombro, passando uma noite solito dentro da tapera.
Foram os piores momentos de sua vida, se apavorando toda vez que uma coruja piava ou um rato corria.
A noite era escura, embora a lua cheia, pois de quando em vez as nuvens pesadas encobriam a rainha da noite, o vento assobiava puxando chuva e alguns pares de raio pareciam rasgar o céu.
Os caibros estalavam, e as poucas janelas que restavam rangiam nas dobradiças. Até as árvores na volta pareciam gemer.
Severino escutava os sorros, os guarás, os guinchos dos ratos e todo aquele gritedo, parecia entrar miolo adentro e o levavam a pensar consigo que todos aqueles gritos eram de medo.
Até pisadas ele pareceu escutar e sentiu a respiração de quem ele não conseguia enxergar. Ás vezes até lhe parecia vislumbrar algum vulto, entre um “mandado” e outro.
O frio subia pela espinha até arrepiar os cabelos, e os dentes batiam de tal jeito que lhe doíam as carretilhas, mas enfim, ele precisava honrar a pataquada e embora tremendo como vara verde, ficou na tapera, disposto pelo menos a tentar agüentar aquela noite de pavor.
Tentando se proteger do vento e da chuva que ameaçava cair, arrastou os cacarecos da casa e encostou onde um dia tinham sido portas e janelas e, sem querer, tampou a porta do rancho com um guarda-roupa velho, que com o vento ficou batendo a porta, e balançando o espelho pregado nela.
O Emerenciano e o Deodato, que na verdade não ficaram cuidando para o caso do Severino tentar fugir, conforme prometido, mas voltaram ao rancho e se cobriram com lençóis brancos e ainda fizeram máscaras de porongo e colocaram dentro, vidros cheios de vagalumes.
Queriam garantir o susto no amigo e fazer com que admitisse que estava acoquinado de medo.
Quando chegaram à tapera, uma coruja rasgou mortalha e o céu véio se riscou num raio, refletindo os dois no espelho da porta do guarda-roupa embalado pelo vento.
Aqueles dois vultos brancos, com uma caveira luminosa em cima dos ombros, fazendo um lusco-fusco, pelos buracos de olhos, boca e nariz era o quadro do terror.
Sever0ino não se assustou porque não viu nada, na verdade,nem olhava pra fora de tanto medo, mas o Deodato e o Emerenciano, que viram esses vultos, sem saber que era o espelho, levaram tamanho cagaço, que fez darem os costados no rancho em questão de minutos, sem fôlego e brancos como morim quarado.
Nunca mais desafiaram o Severino, o que foi uma prova de reconhecimento da sua “coragem”, mas com a noite de cachorro que passou, também deixou de ser balaqueiro, pois não agüentaria outro desafio igual. Además, haja sabão pra lavar as ceroulas depois….!