Covid-19: mercado paralelo tem oferta de vacinas de origem duvidosa pelo WhatsApp

Exigência é pagar metade do valor antecipadamente

Foto: Divulgação/Governo RS

Em plena disputa global por vacinas para a Covid-19 é possível receber, via WhatsApp, uma proposta de 20 milhões de doses do modelo de Oxford-AstraZeneca, por 4 euros por unidade (cerca de R$ 26,5). O preço e o cronograma de entrega, em até 30 dias, são melhores do que o governo federal obteve em grandes negociações. A oferta que parece de ouro, porém, não tem garantia de entrega ou aval da fabricante: é um retrato do mercado paralelo de vacinas, que levanta alertas sobre risco de golpe.

O volume de doses que poderiam imunizar uma cidade do porte de São Paulo foi proposto ao Estadão pela empresa alemã GB Trading, que vende luvas, máscaras e álcool em gel pela internet. A exigência é pagar metade do valor antecipadamente. Cobrado sobre provas de que a compra é segura, o vendedor se esquivou, ficou irritado e negou ser um golpista.

Apesar de caricata, a oferta foi uma das que atraíram Christian Faria, empresário do setor de aluguel de trio elétrico em Vila Velha (ES). Ele procurou por meses fornecedores de vacinas na internet, repassou a proposta da GB Trading ao Ministério da Saúde e chegou a se reunir com a cúpula da pasta, em fevereiro. Neste encontro, apresentou a oferta de outro parceiro, mas de doses da mesma fabricante. No fim de março, Faria se tornou alvo de investigação da Polícia Federal (PF) justamente por entregar documentos falsos nessas negociações. O empresário nega a acusação.

O mercado paralelo ao das fabricantes ganha fôlego com forte lobby para flexibilizar a compra de vacinas pela iniciativa privada. O tema foi colocado à mesa em jantar do presidente Jair Bolsonaro com empresários, no dia 7. A Justiça tem dado aval para que as compras sejam feitas sem necessidade de doar todo o volume ao SUS enquanto grupos prioritários são imunizados, como manda a legislação.

As fabricantes das vacinas já autorizadas no Brasil afirmam que só vendem ao Ministério da Saúde e a iniciativas como a Covax Facility, consórcio liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “A pergunta que deve ser feita é: comprar de quem? As empresas sérias só vão fornecer para os governos, até pela razão de os governos estarem assumindo o eventual efeito adverso”, diz o presidente do Sindusfarma, Nelson Mussolini, que representa as principais empresas farmacêuticas do País. Ele diz já ter desestimulado empresários a buscar as doses. “Falei que era roubada.”

Apesar das manifestações das fabricantes, empresários de todo o porte, além de prefeitos e governadores, buscam vacinas por meio de intermediários. Segundo vendedores procurados pelo Estadão, ninguém conseguiu importar as doses até agora. Em tentativa clandestina de furar a fila da vacina, empresários de Minas receberam soro em vez do imunizante da Pfizer, segundo suspeitas da Polícia Federal.

Em janeiro, quando a União Europeia cobrava a AstraZeneca pelo atraso na entrega de doses, empresários brasileiros negociavam a compra de 33 milhões de vacinas deste modelo, por cerca de US$ 23,8 cada (R$ 134,1). O governo federal deu apoio à compra, mas exigiu a doação de parte do lote ao SUS. O negócio não deu certo, apesar da mobilização. Tanto a AstraZeneca como o fundo de investimento Blackrock, apontado pelos empresários como um interlocutor, negaram que as doses e a negociação existissem.

Um vendedor de São Paulo que garante ter doses das chinesas Sinovac e Sinopharm, mas não quer se identificar, disse ao Estadão que abriu negociações com cerca de cinco empresários e representantes de associações. As conversas não avançaram. Ele cobra entre US$ 53 (R$ 298,6) e US$ 58 (R$ 326,78) por cada dose e diz que os lotes pertencem a cotas de uma grande empresa chinesa. Questionada sobre o caso, a Embaixada da China disse que a suposta fornecedora das doses e sua representação da Sinovac e Sinopharm “não são confiáveis”. Ainda assim, o vendedor disse que mantém as negociações, mas pedirá aval dos governos chinês e brasileiro antes de fechar a compra.

Ex-diretor da Anvisa, Ivo Bucaresky vê com desconfiança a mobilização de empresários. “Duvido que qualquer laboratório vá dar preferência ao setor privado. Ou vão fazer um leilão violento, gerando sobrepreço sobre o valor das doses?”, questionou. “Por que não investem na produção de insumos farmacêuticos para as vacinas no Brasil, ou na distribuição de testes e máscaras? Acho pouco provável que o setor consiga essa vacina de imediato”, afirmou.

Além da escassez de doses, ele lembra que é preciso montar rigoroso esquema de farmacovigilância para monitorar reações à aplicação. Alerta, ainda, sobre o risco de desvio das vacinas, caso sejam aplicadas fora do SUS ou das clínicas privadas.

Os empresários Carlos Wizard e Luciano Hang fazem parte do lobby pela vacina no setor privado. Eles receberam apoio do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), entre outras autoridades. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse a deputados, semana passada, que não irá barrar a discussão, mas se mostrou cético. “Quero ver para crer”, avisou ele, ao declarar que farmacêuticas relatam não ter doses para este mercado.

Mesmo em plena disputa global por doses, Wizard disse ao Estadão que busca vacinas a preços similares àqueles apresentados ao governo federal. Para o empresário, sobrarão imunizantes em poucos meses. Ele mira estoques excedentes de países que vacinam em ritmo acelerado, como os Estados Unidos, e diz que pedirá aval do ministério para as compras.

A Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCVAC) tem acordo para a compra de 5 milhões de doses da Covaxin, vacina desenvolvida pela indiana Bharat Biotech. Neste caso, a negociação é feita com a Precisa Medicamentos, representante oficial no Brasil do laboratório. A previsão é de que as doses custem aos associados de US$ 32,71 (R$ 184,66) a US$ 40,78 (R$ 230,22), mas a entidade afirma que a legislação atual dificulta as negociações das clínicas, por exigir doação de até todo o volume ao SUS. Além disso, o uso da Covaxin ainda precisa ser aprovado pela Anvisa.

Milhões de doses

Elvis Alves Jacob, ex-vereador de Belford Roxo (RJ), tentou vender kits de teste rápido no começo da pandemia, mas não teve sucesso. A empreitada fez Jacob conhecer amigos que o levaram ao mercado paralelo das vacinas.

Primeiro, ele fez contatos para negociar doses da Coronavac, mas disse que desconfiou das cobranças por pagamento antecipado. Agora, o ex-vereador afirma representar a empresa TMT Globalpharma, da Bulgária, em negociações com prefeitos no interior do Rio e de Minas para a venda da vacina Sputnik V, da Rússia. As investidas do ex-vereador para venda de vacinas foram reveladas pelo Blog do Berta.

Após a Câmara aprovar projeto que libera as empresas de doar 100% do volume comprado ao SUS, enquanto grupos prioritários são vacinados, Jacob decidiu expandir o público-alvo. Na noite de quarta, ele anunciou no Instagram que abriu pré-inscrição para empresários e hospitais privados comprarem a vacina russa.

Como revelou o Estadão, centenas de prefeitos mo País negociam com a TMT Globalpharma doses da Sputnik V e da AstraZeneca. O Fundo Russo de Desenvolvimento Direto disse que a empresa NÃO (em letras garrafais) tem autorização para essa venda. O laboratório britânico, por sua vez, negou atuar com intermediários e disse só vender ao governo federal.

Jacob afirmou ter ouvido rumores sobre a falta de credenciais da TMT, mas não vê risco de golpe, pois o pagamento seria feito após as doses chegarem. O ex-vereador disse que pediu à empresa búlgara provas de que tem aval do Fundo Russo, mas ainda aguarda resposta. Observou, ainda, que há muita procura pelos imunizantes e que já abriu negociação com aproximadamente 15 prefeitos.

Com informações da Agência Estado