A barbearia do Neto

"Este jornal vai ser feito para toda a massa, não para determinados indivíduos de uma facção". Foto: Arquivo CP

“Mais cheiroso que mão de barbeiro”! Quem não conhece a expressão ? Pois o Neto seguia o ofício que fora do pai, do avô e do bisavô.Morava no centro da vila e tinha a barbearia numa peça de frente prá rua como sempre assim fora à época de seus antepassados. Quem me assuntou este causo foi o Luís Augusto Fischer.
A barbearia nunca teve fama de ser o mais asseado dos lugares, mas Neto era o fruto da geração mais porca. Depois que o pai se fora pro outro lado do véu e ele herdou o lugar, deixou o salão virar tapera. Mas nunca pôde reclamar de falta de freguesia, sempre tinha um “gadeiudo” na fila de espera.
O marketing era baseado na tradição: o povo frequentava o salão do primeiro corte a penico até o cabelo branquear ou ficar tão ralo a ponto de pagar a metade do preço do serviço. Além disso, Neto havia crescido entre navalhas e tesouras e entendia do negócio, fazia porque gostava. O barbeiro aparava todo mundo do mesmo jeito, mas nenhum gaúcho saía dali mais feio do que chegava. E isso era o suficiente para manter a atividade. Mas nada era tão decisivo para a longa vida da barbearia do que a simples e certeira falta de concorrência: era a única da redondeza. Então, ” a propaganda é a alma do negócio”. Conversa fiada. Se dependesse da propaganda, Neto tinha perdido sua alma há muito tempo.
Mais fedorento que arroto de corvo, o lugar era de dar medo em qualquer um, cagarola ou não. Podia ser o mais tosco dos peões. Macho ou cheio de nove-horas, quem entrasse no salão não conseguia evitar a frescura: metia a mão na frente do cheirador, abanava a catinga com o chapéu, tinha revertério no estômago, ânsia de vômito, tontura. Virava uma china prenha. Inverno e verão, o lugar era um inferno. Em dias frios, o barbeiro tinha o hábito de gazear o sábado do banho e fechar a porta e a única janela do salão. Paieiro aceso, cinzeiro dormido, pala mofado por ter ficado meio ano em armário úmido, nenhum fedor podia sair. No fogão, instalado na cozinha, ao lado da saleta, a fumaceira ganhava volume a cada troca de cliente. Neto arrastava as “alparagatas” no chão, recolhia o mais grosso dos cabelos e metia aos punhados no meio da brasa. Borracha queimada era perfume. Nos dias quentes, arremangava a camisa- os punhos sempre engomados de sujeira – e abria a barbearia, porque nem ele próprio podia com o fedor naquele mormaço. Era morrinha de pano sujo, dos cuscos que ele deixava dormir debaixo das cadeiras, de uma galinha ou outra que cruzava o salão como visita e bosteava sem pedir licença;
Ninguém se arriscava a criticar os modos de higiene do Neto. Quando alguém se atrevia, ele sempre dava nos dedos, com a grossura que vinha de família. ” E esse mosquedo, Neto?”, ouviu, certa feita, de um cliente desavisado, que balançava as mãos na frente da cara para se livrar do enxame. ” Se não gostas das moscas vem perto da hora da boia. Elas vão todas para a cozinha, gozava o barbeiro. Quando se cortava o cabelo na cidade, era costume tomar banho antes de ir ao salão.Na barbearia do Neto era o contrário:o banho se fazia necessário depois do cabelo, barba e bigode feitos, e foi por isso que lugar virou ponto de encontro de gente sem banho, fedida na lida, cheirando a cavalo.
O último cheiroso que apareceu por lá entrou para a história da malcriação do Neto. O rapaz, filho de um doutor que estava negociando terras por aquelas bandas, engraçou-se para uma moça do lugar e quis dar uma limpada na cara para fazer um grau. Chegou apressado, quase na hora de fechar a barbearia. E por isso foi atendido de prontidão. Livrou-se da fila,mas não da fama aromática do salão. Tirou o casaco e pendurou em um prego na parede. A camisa branca alvejada chegava a reluzir naquele amarronzado encardido do salão. No fim da tarde, quando o sol parava de cozinhar, a barbearia do Neto arejava o cheiro de gente e ganhava um fedor mais parecido com o de estrebaria, das botas que tinham pisado aquele assoalho. Nada mau. Então o forasteiro ficou receoso menos pelo olfato e mais pela visão. Olhou meio torto para o assento de fazer a barba: uma cadeira de palha com um forquilha amarrada no encosto por uma tira de couro, em que o vivente encaixava a cabeça para oferecer a garganta à navalha do barbeiro. por pressa ou medo da cara do Neto, que estava louco para encerrar o expediente, o cliente sentou sem dar um pio. O rapaz dispensou a toalha enrolada no pescoço- não queria sujar a camisa branca- e deitou a cabeça na forquilha. E Neto começou o serviço. Limpou a navalha nas calças e a ajeitou na mesinha, com toda a delicadeza que conseguia, porque precisava agradar a visita. Abriu a gaveta e pegou um sabão barbudo, que a essa hora já tinha secado, e o pincel. Debaixo das asas do barbeiro, o cliente novo começou a exercitar o olfato e a fazer cara de nojo. Neto achava que todo mundo fazia essa cara para cortar a barba e nem estranhou. Quando o barbeiro deu uma cusparada no pincel, o rapaz pulou da cadeira. ” A la pucha, vivente! Que bicho te mordeu?”, perguntou o Neto, sem saber o motivo do alvoroço. ” O senhor cuspiu no pincel”. disse o cliente, encolhido,a título de informação, não de desfeita. ” Guspi, sim…”, argumentou o barbeiro, que não entendia que mal isso tinha, fazendo uma ênfase no ” gus”, de “cuspir”, para corrigir o bundinha da cidade. ” Mas isso não pode, meu senhor…” negociava o luxento, querendo resolver numa boa, sem criar entrevero. ” Guspi no pincel porque és de fora, és visita aqui na minha barbearia. Na gente de casa, cliente fiel, eu guspo na cara mesmo.”

É…. com a navalha na garganta, não é por medo que se prende a respiração….”

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