Confirmadas duas mortes fetais causadas pela toxoplasmose em Santa Maria

Mais três óbitos suspeitos seguem sob investigação

Autoridades de saúde estaduais e do município de Santa Maria confirmaram, hoje, em entrevista coletiva, que pelo menos duas mortes fetais registradas na cidade tiveram como causa o surto de toxoplasmose, detectado na metade de abril. Já o Ministério Público Federal, que emprestou a sede para a coletiva, divulgou ter aberto um procedimento administrativo para investigar as medidas utilizadas pela Prefeitura para combater o surto, após infectologistas do município terem emitido uma nota técnica (veja a íntegra abaixo).

A médica infectologista Jane Costa afirmou que Santa Maria registra, ainda, mais três óbitos fetais com suspeita de toxoplasmose sob investigação. Além disso, ela frisou que um informativo repassado hoje aos moradores esclarece que o tempo de fervura da água necessário para matar o protozoário toxoplasma gondii, causador da doença, é de um minuto, e não de dez, como se dizia até então.

Quanto à carne, os médicos recomendaram o congelamento do alimento em freezer a -12ºC, por 48 horas, antes do cozimento. A equipe lembra que o congelador da geladeira não chega a essa temperatura. Já quando ocorrer a manipulação de terra ou areia, deve-se lavar rigorosamente as mãos e, depois, utilizar o álcool.

Ao se perceberem sintomas de febre, dores de cabeça, dor no corpo ou ínguas no pescoço, os médicos pedem que os moradores procurem o serviço médico imediatamente para evitar a automedicação.

Os infectologistas seguem sugerindo, inclusive, que casais que desejem ter filhos avaliem a possibilidade de postergar a gestação para um momento em que já se tenha maior segurança acerca do controle do surto.

NOTA TÉCNICA DOS INFECTOLOGISTAS 

Santa Maria/RS, 14 de maio de 2018

“Na segunda quinzena de março de 2018, diante de atendimentos de inúmeros pacientes com síndrome infecciosa febril, sem uma causa definida, os médicos Infectologistas deste município notificaram os serviços de vigilância epidemiológica municipal e estadual sobre a possibilidade de um surto. Na época foram inúmeras notificações de nossa parte, com incontáveis posicionamentos contrários das autoridades, sempre com negação da ocorrência de tal problema, inclusive com entrevista do atual coordenador regional de saúde, Sr Roberto Schorn negando a ocorrência de tal surto em 19 de abril de 2018.

Hoje apresentamos um número acima de seiscentos casos de toxoplasmose aguda em Santa Maria, configurando, possivelmente, a maior epidemia desta doença em âmbito mundial. As autoridades locais, inclusive o atual prefeito deste município seguem manifestando exagerada e incompreensível tranquilidade frente a tal surto. As autoridades e gestores discursam que não se trata de uma doença grave, que na maioria das vezes é autolimitada, benigna, e sem complicações. Contudo, isso é uma “meia verdade”, e nossos próprios dados explicam. Por se tratar de uma doença na maioria das vezes assintomática (pacientes adquirem a infecção mesmo sem apresentar sintomas) estima-se que milhares de santa-marienses tenham sido infectados. Não há como precisar quantos milhares de indivíduos, pois para este calculo deveríamos conhecer a prevalência, ou seja, a frequência de indivíduos que já eram infectados antes deste surto. Utilizando dados nacionais onde a prevalência pode alcançar 70% de positividade, poderíamos de maneira otimista afirmar que temos 200 mil pessoas “imunes” e 80 mil pessoas suscetíveis, inferindo que sejamos 280 mil habitantes nesta localidade. Destas 80 mil pessoas expostas, caso todas fossem infectadas, apenas cerca de 30% teriam sintomas, e cerca 1% delas (800 pessoas) teriam forma complicada da doença. Porém, em ciências médicas, as coisas não são tão exatas assim. Somamos dois pacientes com infecção cerebral, outro com infecção pulmonar, um outro com infecção pancreática, incontáveis com lesões oculares, duas mortes fetais confirmadas, outras duas em avaliação, além de recém nascidos infectados e milhares de gestantes expostas.

Em 23 de abril de 2018, após avaliarmos duas gestantes com status de “imunidade previa” contra Toxoplasmose nos deparamos com uma situação muito inusitada. Estas gestantes apresentaram sintomas clínicos, e nova positivação dos seus testes sugerindo reativação ou uma nova infecção por outra cepa de Toxoplasma gondii. Diante desse fato tivemos que imediatamente orientar que todas as gestantes deste município tomassem as devidas precauções pois nenhuma delas estaria “imune” para este surto. Toxoplasmose na gestação é algo catastrófico, algo muito difícil de mensurar. Não há como confortar as quatro famílias que perderam seus fetos. Desses quatro óbitos fetais, duas investigações já concluíram que a Toxoplasmose foi a causa da morte fetal.

Cabe lembrar que são quase quatro mil gestações a cada ano em Santa Maria, e que neste momento são mais de 50 gestantes em processo de avaliação no pré-natal de alto risco do Husm. Dessas, pelo menos 20 já estão em tratamento com medicamentos que são muito perigosos de usar, tanto para mãe quanto para seu feto, mas enfim, são necessários. Também já documentamos as autoridades sobre dois casos de recém-nascidos com toxoplasmose congênita, uma doença extremamente lesiva ao bebe, que tem risco de sequelas neurológicas graves, necessidade de exames invasivos como retirar líquido do espaço meníngeo, tomografias com exposição à radiação, uso de medicamentos tóxicos que causam muito vomito, náusea e anemia. Em geral, esses recém-nascidos usam tais medicações por um ano. Notem que essa é a melhor alternativa para um bebe que sobreviveu e não morreu dentro do útero de sua progenitora.

Diante do acima exposto, sempre que tomamos decisões e comunicamos a população de medidas preventivas, ou questionamos testes diagnósticos, utilizamos ferramentas, e evidencias de outros surtos que tenham ocorrido em outras populações. Não podemos basear decisões tão serias em “achismo”, ou no “eu penso”. Não há espaço para isso. Existe literatura precedendo o nosso surto, amplamente disponível. Para tal deve-se ter conhecimento técnico e de interpretação para tal. A Epidemiologia é a ciência que estuda isso, não exclusivamente para Medicina, como para qualquer outra área seja de saúde. Não é exclusivo da Medicina. Na bem da verdade as principais escolas de pós-graduação em Epidemiologia contam com outros profissionais além de médicos. Quero dizer que quando um técnico ou engenheiro de determinada instituição afirma que o Dr Fábio Lopes Pedro não sabe nada de água, eles estão em parte certos. Contudo entendo muito bem de testes diagnósticos na água ou em outro material qualquer, entendo da distribuição de uma doença, de suas características clinicas e epidemiológicas, de sua distribuição espacial, de seus dados de frequência e outros tantos indicadores que utilizamos na investigação de surtos. Porque então os médicos orientaram cuidados com fervura de água ou utilização de filtros?

Até o presente momento não conhecemos a origem da contaminação. Sabemos que é por via oral, ingestão. Sabemos que pode ser por carne, hortifrutigranjeiros, ou água. Pelos estudos prévios de surtos documentados em outros países e no Brasil, a água é a principal suspeita em surtos com números tão expressivos de casos como o nosso surto. Além disso, já diagnosticamos pacientes adultos que não consomem carnes, e um lactente que ate seus quatro meses de vida consumiu apenas o leite materno (o qual não transmite o parasita) ou leite em pó com água da torneira. Felizmente essa criança esta muito bem atualmente. Então, diante dos dados epidemiológicos e clínicos, baseados em incontáveis artigos de literatura prosseguimos orientando que a água seja tratada como suspeita, e alias a principal suspeita. Ninguém aqui esta imputando culpa na CORSAN. Isso seria irresponsável. As outras fontes devem ser investigadas sempre, ate esgotar as possibilidades. Sobre a interpretação de testes diagnósticos isso é muito difícil para pessoas desprovidas de tal conhecimento. Quando utilizamos um determinado teste devemos analisar incontáveis fatores, mas resumidamente sensibilidade, especificidade, valores preditivos negativo e positivo. Mais simplório ainda é analisar a amostra e o que ela representa do universo, ou da população que estamos estudando.

Ao analisarmos a água, para pesquisa de um determinado parasita, devemos correlacionar dados de densidade, locais de ocorrência. Então, de onde coletamos a água? Qual volume de água ideal para tal teste ter acurácia razoável? O teste utilizado é sensível, ou seja, a proporção de amostras positivas será alta quando tivermos Toxoplasma gondii num determinado material? O teste tem elevado valor preditivo negativo, ou seja, seu resultado negativo tem grandes chances de excluir tal hipótese? Vou responder. A escolha de amostras de água a serem coletadas deve ser orientada por mapeamento dos casos, uma vez que existem diversas analises estatísticas de georreferenciamento, e profissionais competentes para tal execução na UFSM. Obvio que as informações colhidas dos pacientes devem questionar sua moradia, trabalho, lugares frequentados rotineiramente, entre outras variáveis. Os órgãos de vigilância epidemiológica parecem ter estes dados, uma vez que informamos todos os nomes completos, e telefones de todos pacientes que diagnosticamos ate o presente momento. Então porque após quase dois meses de surto não temos nada ainda? Esses dados devem ser de acesso publico, pertencem ao coletivo e não exclusivamente a pessoas ou instituições. É irresponsável não compartilhar esses dados com profissionais de saúde ou agentes comunitários das localidades mais afetadas, pois poderíamos reforçar medidas de prevenção. A segunda questão é sobre o volume de água a ser coletada. É muito difícil isolar partículas tão pequenas como o oocisto de Toxoplasma gondii em pequenos volumes de água. Há mais de 20 anos, Isac-Renton desenvolveu técnica para diagnostico de Toxoplasmose na água. O surto no oeste canadense teve 100 infecções e quatro meses de duração. Foram necessárias grandes quantidades de água, e inoculação em ratos. As técnicas foram aprimoradas, especialmente com advento de biologia molecular (PCR).

A Universidade de Londrina, através de seu Laboratório de Zoonoses é referencia de excelência e competência para tal. O teste em si apresenta baixa sensibilidade (7-10%) conforme referencias recentes de literatura como um estudo escocês que colheu quase 1500 amostras, e teve pouco mais de 100 positivas. Quando colhemos a amostra correta, ainda sim é difícil, mas nessa situação a sensibilidade analítica é muito boa. Todavia, com sete (7) amostras de água, qualquer analise laboratorial deve ser avaliada em conjunto com as analises epidemiológicas conduzidas. Assim, o valor preditivo negativo é muito baixo, sendo praticamente impossível excluir tal suspeita com tão poucos testes realizados. Não podem figuras publicas representantes da principal companhia de distribuição de água do estado, e o principal gestor do município de Santa Maria divulgar que tais testes diagnósticos excluem CABALMENTE tal suspeita. O teste diagnóstico utilizado não serve para tal afirmação. Trata-se de uma interpretação tão equivocada que entramos em contato com a responsável do Laboratório em Londrina. A Dra Roberta Lemos Freire, por e-mail, e ela reforçou nossa afirmação, de avaliar em conjunto com os dados epidemiológicos.

As autoridades, em especial o prefeito Jorge Pozzobon e seus subordinados, devem focar mais a sua atenção e provir seu município de Oftalmologistas, Obstetras, Infectologistas e Pediatras; melhorar o acesso aos medicamentos, tornar mais ágil o acesso à consulta médica. O prefeito deve preocupar-se menos com a isenção de seu gabinete ou da CORSAN, nessa busca obstinada por publicar exames negativos na água. Deve ser orientado pelos serviços de vigilância e ter a persistência de investigar o foco, repetir talvez milhares de amostras de analise de água com colaboração da CORSAN a qual certamente já compartilhou o mapeamento da rede e o fluxo de distribuição das águas de Santa Maria. O uso de mídias sociais para demonstrar que poucas amostras de água são negativas para Toxoplasmose pode confundir pessoas sobre os cuidados de prevenção. Essa função ainda é reservada aos médicos que melhor lidam com tais informações. Por isso reiteramos que gestantes, pacientes imunodeprimidos, crianças pequenas devem evitar consumo de carnes mal cozidas, ou mesmo manipular carnes cruas, evitar hortifrutigranjeiros não cozidos, e evitar o uso de água não filtrada ou não fervida, até que saibamos a fonte da contaminação. Gestantes devem repetir seus exames sorológicos mensalmente com seus obstetras. Orientamos que casais posterguem uma gestação para um momento de melhor conhecimento dos mecanismos de transmissão. Ate que isso aconteça esperamos atitude persistente da gestão municipal na busca de esclarecimentos que sejam conclusivos e não apenas midiáticos.”

Fábio Lopes Pedro, Graduação em Medicina (UFSM, 1998-2003); Pediatria (UFSM, 2004-2006); Infectologia (UFSM, 2006-2009); Mestrado e Doutorado em Epidemiologia (UFRGS, 2009-2015); Supervisor do Serviço de Doenças Infecciosas do HUSM e da CCIH da Unimed Santa Maria.

Assinam essa nota: Reinaldo Agne Ritzel, Jane Margarete Costa, Fernanda Paula Franchini, Lucas Figueiredo Rosa, Leonardo Franco, Thiego Teixeira Cavalheiro, Vanessa Oliveira, Paula Martinez, Alexandre Vargas Schwarzbold, Felipe Ferigolo, Helen Minussi Oliveira, Liliane Souto Pacheco.